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Crítica Literária por Miguel Real


MICROCOSMO

2014-08-13

Presidente da Associação Portuguesa de Críticos Literários, autor da última biografia publicada sobre Júlio Dinis e, em conjunto com Madaleno Carretero Cruz, de uma biografia e uma antologia sobre o dificílimo escritor e ensaísta Ruben A., Liberto Cruz publicou em 2012 a totalidade da sua poesia em Poesia Reunida. 1956 – 2011 (Palimage) e, agora, em 2014, o seu primeiro romance, Felicidade na Austrália (Estampa).

Felicidade na Austrália é um título enganador, já que toda acção decorre em Sintra. Partindo de um verso de Álvaro Campos, o termo “Austrália” assume no romance a ideia atractora de “terra encantada”, lugar onde se pode ser feliz ou onde se foi feliz. Neste caso, a felicidade inocente da infância e da juventude do autor passadas em S. Pedro de Penaferrim, terra de sua naturalidade. Localidade marcada por vastas quintas nobiliárquicas, que, a partir da década de 1950, foram mudando de proprietário, compradas por empresários enriquecidos, é também habitada por uma comunidade popular, entranhadamente sintrense, em compita com as restantes freguesias do concelho, nomeadamente S. Martinho. Felicidade na Austrália narra a história colectiva deste grupo popular, “simultaneamente tão natural, tão buliçoso e tão pachorrento” (texto de contracapa), por via de figuras típicas, até pitorescas (mas não por via de tipos sociais, como o neo-realismo descrevia as camadas populares), um pouco ao modo de José Rodrigues-Miguéis, como, por exemplo no seu conto “Saudades para D. Genciana”.

Desenhando o microcosmo da vida colectiva de uma freguesia de Sintra num registo literário realista, Liberto Cruz, porém, alcança o desiderato de nos dar – preto no branco, como em antiga fotografia – o macrocosmo dos elementos fundamentais da vivência popular em Portugal de meados do século XX. Felicidade na Austrália constitui-se, assim, como um verdadeiro documentário de um Portugal pré-europeu e pré-moderno, carregado de paroquialismo católico, atravessado de pequenas quezílias entre famílias e de limitadas invejas individuais. Era assim Portugal, como os filmes de António Silva, Vasco Santana e Beatriz Costa ainda hoje nos evidenciam e que o romance de Liberto Cruz tão bem ilustra. Neste sentido, Felicidade na Austrália constitui-se, para além do seu timbre literário, e porventura devido ao seu realismo, como um verdadeiro documentário ficcionado (ou uma ficção documentada) de um tempo português. Um caso estético precioso, justamente para Sintra, onde decorre a acção, mas também, enquanto testemunho pessoal, para a história portuguesa do século XX.

Felicidade na Austrália é tecido de humor (um humor permanente que atravessa todas as 14 histórias ou estórias), de relações sociais inquinadas pela concorrência entre famílias, de invejas pessoais e de desejo, por parte dos jovens, de rasgarem novos horizontes. Dos romances de Júlio Diniz, o autor apreendeu a semântica natural das palavras, todas com um sentido social preciso; de Ruben A., o emaranhado complexo da mente humana, o labirinto da consciência que não se conforma com a realidade e o contínuo desejo de partida (em parte também fruto da experiência de vida de Liberto Cruz , que, após a sua participação na Guerra do Ultramar, partiu para terras de França onde foi professor e conselheiro cultural). Do estilo da sua poesia, guarda o autor, singularmente, a ausência neste romance de retórica, de eloquência, de um estilo florido e pomposo, como costumam ser as primeiras obras. Muito pelo contrário, o estilo realista, como referimos, marca indubitavelmente a composição deste romance, acompanhada de um humor por vezes sarcástico, por vezes jocoso.

Com este estilo e com a inspiração das vivências da infância e da juventude, Liberto Cruz criou (recriou?) um conjunto de personagens que, funcionando por si, cada uma com a sua história e a sua marca social singular, compõem um fresco de personalidades, emoções e acontecimentos que, no seu todo, como referimos, constitui uma brilhante síntese ficcional da mentalidade do Estado Novo, inclusivamente o episódio de “Os falsos pides”, já decorrido em 1974..

Comunidade fechada em si mesma, personalidades tornadas personagens por via da caricatura, do sarcasmo, não existem personagens extraordinárias, superiores às demais, decorrendo a acção em curtas enredos suspensivos, mas sempre solucionados: - por que na família Matias os homens tinham o nome próprio de Júlio? (“Júlio petróleo”); a rivalidade na freguesia entre anglófonos e germanófilos (“Adolfo versus Bife”) ao longo da Segunda Guerra Mundial; os interesses casamenteiros (“Os gémeos”); as relações amorosas e os filhos bastardos (É a vida”); os rituais das comezainas entre amigos, mesmo com desnível social (“A última ceia”); as viúvas precoces (“Deolinda”); a rivalidade entre as lojas e a megalomania (“A casa de pasto”); os ciúmes (“Dois cavalos e um boi”). “O moço do cego”, “A condessa”, “sete sopas” e “os falsos pides” serão, porventura, as melhores histórias.

Como o explicita com lucidez o texto da contracapa, certamente escrito pelo autor, que – recorde-se – é igualmente crítico literário, “a conivência e o desaforo, o medo e a má-língua, o oportunismo e a resignação, a esperteza e a inveja, o sonho e a represália, a pacatez e a fúria, a pilhéria e a sageza, o comodismo e o atrevimento confrontam-se amiúde [neste romance] através da reposição de coisas e de gentes, em que não se deve esquecer que a verdade da ficção deverá sempre ser tomada em conta”.

Uma belíssima estreia no campo do romance aos 79 anos.


Felicidade na Austrália,

Editorial Estampa, 140 pp., 13,99 euros.

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