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A Opinião de Miguel Real


POLICIAL PSICOLÓGICO

2014-11-10

Síntese de observação atenta e experiência da realidade humana e dos múltiplos tipos psicológicos nela contidos, Como se Fosse a Última Vez, romance de estreia de António Lopes, não se integra de um modo cabal na clássica vertente do género policial, ainda que seja protagonizado por uma brigada de polícia tentando resolver o mistério da morte de C.

Com efeito, os elementos para-policiais (digamos assim) do romance constituem-se, na lógica de Como se Fosse a Última Vez, como meros patamares narrativos para o autor explorar de um modo profícuo a descrição da personalidade e do tipo psicológico de cada personagem suspeita de ter assassinado C. De facto, sublinhe-se que para António Lopes se evidencia como mais importante o modo de narração (descontínuo, fragmentado), isto é, o modo como se deve contar uma história, investigando a personalidade física e a mente psicológica que poderiam cometer um assassinato, do que a própria história, elemento essencial de um romance policial.

Neste sentido, impõem-se as categorias de descontinuidade e fragmentação na composição formal de Como se Fosse a Última Vez, categorias habitualmente estranhas ao romance policial mas aqui fortemente enformadoras da estrutura do romance, parecendo ao leitor menos atento a estas questões, carecer o romance de António Lopes de pouca coesão entre as partes, constituído por capítulos avulsos, descontínuos, assimétricos, quando o autor (ou os múltiplos narradores, como se quiser) pretende testemunhar, mais do que a unidade cronológica da intriga, a análise da personalidade das cinco personagens constitutivas: C., de vida desequilibrada desde a juventude devido ao seu voluntarismo; o marido, R., médico de grande notoriedade; o poeta professor universitário; o jornalista amante de C. e a melhor amiga de C.

Neste sentido, é atribuído um fortíssimo papel ao leitor – uma espécie de leitor participante -, na e pela consciência do qual se constrói a unidade da forma e do conteúdo de Como se Fosse a Última Vez, romance com um final totalmente inesperado.

Por isso, cada capítulo maior corresponde à descrição da personalidade social e da estrutura psicológica de uma personagem suspeita, intervalado por capítulos menores que operam os nós narrativos de vinculação de todas as partes à unidade do romance. Neste sentido, cada capítulo maior, em evidente descontinuidade, poderia constituir um conto independente dos restantes caso não se soubesse todos eles se relacionarem com suspeitos de um assassinato.

O amante jornalista poderia ter constituído a salvação social de C. quando já se invalidara a razão porque esta fora forçada a casar com R. Porém, uma vida insatisfeita e desequilibrada arrastara C. para o álcool e para a toxicodependência. Porém, C., forçada por uma decadência psicológica incontrolável, não podia já ser salva, nem pelo amor (jornalista), nem pela amizade (a melhor amiga).

Entre todas, a personagem do poeta e professor universitário amigo de C., encontrada morta na casa onde se encontrava esporadicamente com o amante jornalista, ressoará durante largo tempo na mente do leitor. Com efeito, a caracterização da personalidade misógina do poeta e professor é absolutamente perfeita, tanto no seu enclausuramento psicológico (recusa conhecer a melhor amiga de C.) quanto na sua pretensão de se tornar um mistagogo de alunos, sobretudo de C., que, ainda que dotada de uma personalidade esquiva às convenções, não consegue acompanhar a claustrofobia poética céptica do seu professor. Poeta de lento aperfeiçoamento do verso, os livros do professor universitário, as suas aulas e as suas relações sociais exprimem uma personalidade profundamente traumatizada na infância e na adolescência devido às suas inclinações homossexuais e um crescimento adulto tecido de solidão e ansiedade, manifestado na busca de uma inatingível perfeição poética. A relação entre o professor e a aluna é sempre desequilibrada a favor do primeiro, mais velho, mais influente, poeta prestigiado, e, por vezes, humilhante para C., cuja personalidade está longe de poder imitar a insociabilidade e o desejado exílio interior do professor. C. busca trato humano, convivência, e a relação com o seu professor apenas enfatiza mais a angústia psicológica profunda que sente desde que, chantageada, casara com o médico R.

Como se Fosse a Última Vez

Parsifal, 169 pp. 14,40 euros.

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