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A Opinião de Miguel Real


TIAGO SALAZAR - UMA ESCRITA PARA ADULTOS INFANTIS E CRIANÇAS PRECOCES

2015-05-18

Tiago Salazar é só um. Não são três: o viajante e, depois, como um acto de adição, o romancista, e, agora, com a publicação de O Baú Contador de Histórias (para Crianças Precoces e Adultos Infantis), o autor de livros para a infância e a juventude.

Muito pelo contrário, insistimos: Tiago Salazar é só um. O mesmo que vagueia pelo mundo, buscando a singularidade de cada cultura, escreve, com idêntico estilo, o romance Hei-de amar-te mais (2013) e, neste 2014, compõe o livro para toda a família O Baú Contador de Histórias (para Crianças Precoces e Adultos Infantis) com belíssimas ilustrações de Vasco.

Porém, não duvidamos, Tiago Salazar é mais conhecido como autor de livros de viagens: Viagens Sentimentais (2007), A Casa do Mundo (2008), Rotas de Sonho (2010) e, finalmente, Endereço Desconhecido (2011), este último registo de um programa concebido para a RTP 2.

Nestes quatro livros, encontramos o autor, não como turista, não na procura apressada do exótico que os catálogos das agências viagens anunciam como destino de turismo massificado, mas o viandante, o romeiro, o peregrino da cultura que faz da demanda interminável, da inquietação de conhecimento e da troca de contactos com o Outro o seu universo de existência.

Para a escrita destes livros de peregrinação cultural, de troca de relações civilizacionais com o Outro, o aparentemente “estranho”, Tiago Salazar usa um estilo muito singular, tecido de observações fragmentárias constituídas por blocos de texto, nos quais o sei itinerário, vinculado ao nome de um país, um território ou uma cidade, é registado, cruzado e inspirado por leituras de poetas e de prosadores consagrados.

Hei-de amar-te mais, romance de intimidade, constitui-se como uma verdadeira viagem a dois, pelo qual o narrador, perfazendo 40 anos de idade, nomeia a amada (Cristina) como se tratasse da iluminação de um segredo pessoal, frutificado em filhos e em terno conhecimento mútuo. Uma verdadeira viagem onde, em substituição do conhecimento trazido pela inquietação do “estranho”, o amor é rei e senhor.

Paradoxalmente, o estilo literário de Tiago Salazar no romance e nos quatro livros de viagens citados é idêntico ao ora publicado, O Baú Contador de Histórias (para Crianças Precoces e Adultos Infantis). É este o motivo principal que nos leva a constatar não existirem diferentes Tiagos Salazar, mas só um, desdobrado polivalentemente em vários géneros literários – o livro de viagens, o romance e a literatura infantil e juvenil.

Com efeito, o estilo do autor reside na técnica do fragmento, isto é, fazer ver e sentir o todo através da parte, desconexar a parte da parte para deixar emergir a unidade do livro na consciência do leitor. É, se se quiser, uma escrita intuitiva, vivendo mais da impressão sensível e da fantasia da imaginação, refreada e organizada pela reflexão, do que de uma linguagem abstracta, objectiva e científica. Esta escrita intuitiva e fragmentária, descritiva nos livros de viagens e sentimental (mas não romântica) no romance, irrompe aqui, neste livro para toda a família, como uma verdadeira explosão de quimera lúdica, de ilusão devaneante, explorando e jogando com o universo infantil (um baú que narra múltiplas histórias) sem descurar os problemas existenciais dos adultos.

Mana assim, neste livro, o cruzamento singular entre um léxico infantil, lúdico e fantástico e um léxico realista. É justamente deste cruzamento deveras peculiar que brota o nonsense do protagonista, Noé, um menino de 13 anos, que quer ser político (e zurra como um burro sempre que vê um político), e da história, feita de inúmeras estórias, do narrador.

Muito bem escrito, O Baú Contador de Histórias (para Crianças Precoces e Adultos Infantis) consiste numa história para todas as idades (com um ou outro impropério que não ofende – pior, muito pior ouve e vê a criança na televisão), acompanhada de denúncia de perversões morais e sociais praticadas pelos adultos. No nonsense radica o elemento satírico da literatura infantil e juvenil, no qual Tiago Salazar se mostra notável herdeiro da tradição portuguesa de Mário Castrim, Manuel António Pina, José Jorge Letria e José Fanha, simultaneamente que recria histórias tradicionais da cultura portuguesa e europeia, bafejadas por um novo e genuíno sopro de fantasia inteleigente.

No final da leitura de O Baú Contador de Histórias (para Crianças Precoces e Adultos Infantis) apetece citar a famosa frase de Eça de Queirós: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia” – eis, em essência, este livro de Tiago Salazar.

Sintra, 30 de Julho de 2014-07-30,

Miguel Real.

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