Raízes - Pepetela
A CIDADE VORAZ
2014-01-21 00:00:00A cidade fervilha, mesmo antes de o dia nascer.
As pessoas, estremunhadas, muitas sem a cara lavada por falta de água nas casas, avançam dos bairros periféricos, das novas urbanizações, do Cacuaco, de Viana, até de mais longe, do Zango, do Panguila, do Morro dos Veados, convergindo para o centro, onde há trabalho ou possibilidade de um negócio. Vêm muitos a pé, de carro individual ou, sobretudo, de candongueiro, os táxis colectivos que compensam a falta de transportes públicos, projecto sempre adiado pelas autoridades competentes, com desculpas descosidas. De comboio só mesmo os sortudos de Viana. O cheiro dos mal acordados se sobrepõe ao perfume barato com que as mulheres tentam disfarçar outros odores.
Nos carros estão famílias inteiras, os filhos arrancados da cama às cinco da manhã e continuando a dormir na viagem, para poderem chegar a horas à escola ou creche e os pais depois seguirem para o trabalho. Gente com dinheiro para ter carro e talvez uma vivenda, mas sem tempo para viver, perdida no trânsito.
Jovens usam motos, alguns aproveitam até para o negócio de levar clientes atrás. Kupapatas se chamam, nome nascido em Benguela, mas depressa se espalhando pelo país.
A cidade é um bicho vivo, cada vez mais desperto.
E voraz.
As vidas ficam sujeitas às necessidades e desejos da cidade, a ela entregando por vezes a alma. Pelo menos a consciência, vencida pelo imperativo da sobrevivência, deixando para trás princípios, valores, vindos de sociedades antigas e com outras regras e vantagens. No entanto, os habitantes perderam a memória, mal transmitida de gerações passadas, não associando portanto a forma de viver (ou de obedecer) à cada vez mais esquecida escravatura. No entanto, sob novas formas, ela permanece, obrigando as gentes a fazerem o que não querem mas a que são obrigadas. De forma mais subtil, apenas.
É mesmo esta a forma como queremos viver?
Pergunta que é feita em grandes metrópoles do mundo. São Paulo, cidade do México, Cairo, Los Angeles, Roma, Xangai, e tantas outras que vou esquecendo, para a alma não sangrar. Milhões todos os dias se repetem a mesma questão, é assim que quero viver? Será só isto que a Humanidade foi capaz de inventar, ao sair da barbárie? Uma nova barbárie, claro. Pois aos inconvenientes apontados atrás, devemos acrescentar as consequências: criminalidade elevadíssima com sua sequente falta de tranquilidade de espírito, barulhos destruindo tímpanos e provocando doenças psíquicas ainda não conhecidas, poluição do ar, destruturação familiar e social, religião tornada negócio com implicações perigosas de sectarismo criminoso. O modelo nova-iorquino se impôs ao mundo inteiro e parece difícil fugir a ele. Alguns sentem esse modelo ultrapassado e se reconhecem mais no Dubai, sem reparar que é exactamente a mesma coisa, pelo menos na essência.
Haverá quem diga, falamos de cidades ou de sistemas sociais? Não é então a mesma coisa? A cidade engoliu o sistema, engoliu a cultura, ou, se quisermos, o reverso, o sistema engoliu a cidade, a cultura engoliu o sistema. Mas atenção! Quando se fala de cultura, é da nova que se trata, a feita nos arranha-céus, a da estridência do som e da cor, a do exagero do desejo e da compra, a de viver para trabalhar e de trabalhar para gastar e a de não ter tempo para viver.
É mesmo o que queremos para os nossos netos? Que conheçam apenas animais de plástico ou os que vêem em zoológicos ou oceanários? Que passem o dia amarrados a aparelhos de jogar e de comunicar com o nada?
Eu não quero.
Pepetela
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