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Raízes - Patrícia Melo


ESCREVENDO NO ESCURO - FELIZ NATAL

2014-02-27 00:00:00

Há um rodízio entre as funcionárias da universidade. Aquela seria a vez de Núbia, mas, como é período natalino, decide-se que Neide, a mais velha do grupo, será a beneficiada.
Depois de tantos anos, Neide sabe, o importante é conhecer a agenda do laboratório. Os coelhos são sacrificados a partir da décima segunda semana. Após os experimentos, os animais devem ser colocados em embalagens próprias e reservados no congelador para depois, juntamente com o material hospitar descartável, ser enviados para incineração.
Naquela sexta-feira, 23, a sala de cirurgias e procedimentos está reservada para o professor Roger, do departamento de Fisiologia do exercício. Neide gosta dele. É sistemático, calado, nunca criou obstáculos. Ela conhece todos os professores do departamento, bem como o nome de suas esposas e filhos, informações que facilitam a liberação do animal sem o rigor protocolar.
São seis e vinte da tarde e ela já fez a varredura e lavagem do piso com desinfetante. Espera que consiga também limpar as bandejas das gaiolas antes da chegada do professor. Acredita que seja este o segredo: agradar. O que significa ser útil, não se ocupar apenas do serviço para o qual foi contratada. Na prática, as faxineiras não são obrigadas – nem autorizadas – a cuidar dos animais. Mas ela aprendeu com a experiência que forrar gaiolas com maravalhas ou encher o reservatório de água faz com que se ganhe a simpatia dos pesquisadores. Ensina às novatas que estão entrando no esquema que a regra vale para todos os professores. Nunca se despreza um funcionário. O homem que estava prestes a ser demitido no ano passado hoje é o chefe do departamento. A roda gira. Os que estão em baixa sobem. Caem os poderosos. Política, eles dizem. Conspiram nos corredores. Por isso, Neide acha prudente ignorar amizades e inimizades. Aqui, ela diz, lobos viram cordeiros e vice-versa.
O laboratório está praticamente pronto quando Roger entra de avental e luvas cirúrgicas. Só falta colocar a forragem e ração nas bandejas.
Eu faço isso, diz o professor ao ver Neide retirando as fezes das gaiolas, você já passou de seu horário.
Ela abre um sorriso, notando que suas mãos estão sujas. Vai até a pia, pergunta das crianças, do Natal e percebe seu erro. Está falando demais. Com ele é preciso ter cautela, o homem não é de conversa.
Roger observa suas cobaias. Os bichos se agitam, ele nota, sabem que vão morrer, sabem desde o primeiro dia. Ao menos não sentem dor, ele pensa, enquanto retira um animal da gaiola.
Vai até a bancada e liga a esteira motorizada, regula a velocidade, e coloca o coelho para se exercitar. Na sequência, abre seu computador pessoal e começa a fazer anotações que parecem intermináveis para Neide. Pelo jeito, ela conclui, a noite vai ser longa.
Está tudo pronto lá dentro, ela informa depois de algum tempo, querendo acelerar os procedimentos. Posso pegar um bicho?
O professor olha o relógio, diz que ainda tem que completar um relatório e que não quer prender a funcionária. Pode ir, Neide. Eu faço tudo, não se preocupe.
O senhor sabe que eu gosto, ela insiste. E não tenho ninguém me esperando em casa. Nem meu velho vira-lata.
A última informação é verdadeira. Seu cachorro morreu no mês passado, e lembrar dele esmagado no asfalto quente da cidade como se fosse uma pasta de carne lhe traz muita tristeza. Ultimamente tem sonhado com o bichinho. Seria certo orar por um cachorro morto? Devia conversar sobre o assunto com o pastor, ela conclui.
Agora a faxineira está diante do armário onde se encontra a ração. É sua última tarefa naquela tarde.
Depois não tem mais como ficar ali sem ser um peso. Há pesquisadores que abrem seus computadores sobre as bancadas e tudo o que fazem, durante horas, é pesar seus ratos e coelhos, retirar sangue e preparar lâminas. Neide já convidara a filha e os netos. Palmira, a vizinha viúva, também iria. Só o que me falta, ela pensa.
Repentinamente, Roger parece mudar de ideia. Embora prefira estar sozinho, não quer se desfazer da funcionária e aceita sua ajuda. Pede que traga seringa e cateteres. Ao longo de tantos anos, Neide aprendeu os procedimentos. Ao lado do professor separa materiais, pega os instrumentos esterilizados. Onde está o anestésico? Pergunta Roger.
Ela vai buscá-lo.
O professor escolhe um coelho e o leva para a bancada da sala de procedimentos e cirurgias, ao lado.
Neide o acompanha e ajuda a imobilizar o animal, enquanto o professor aplica pentobarbital sódico na orelha de sua cobaia.
Em poucos minutos, o bicho perde os sentidos e tem seu ventre aberto.
Gostaria que meus alunos tivessem a diligência da faxineira, pensa Roger. Talvez aprendessem alguma coisa.
A mulher observa a eutanásia com atenção, mas o pensamento está longe, no cachorro morto e enterrado no quintal. Tem evitado ir até lá, não quer sofrer o dobro. Nunca mais vai ter bichos dentro de casa, decide. Depois eles morrem, e fico aqui chorando por causa da bosta de um cachorro.
Você devia fazer caminhadas como meus coelhos, diz Roger, isolando o rim do animal. Sua diabetes também iria melhorar.
Ela acha graça. Já anda tanto. Do ponto de ônibus até a universidade são vinte minutos. Vinte minutos com o joelho latejando.
Você poderia perder alguns quilos, continua o professor. Me passa o cateter, por favor.
Neide faz o que Roger pede, e o observa manusear a sonda para realizar a lavagem do órgão para depois fazer as análises.
Não entendo por que não emagreço, ela diz. Quase não como.
Com destreza, Roger extrai o rim de sua cobaia, junto com a cápsula renal. Lava o córtex, e depois o retalha.
Já está na hora de tirar o coelho da esteira, ele diz, com as mãos sujas de sangue.
Neide vai até a sala ao lado, desliga o equipamento e leva o animal para a gaiola.
Estava com a língua de fora, o coitado, ela comenta na volta, ao ver o professor lavando as mãos. Posso começar?
Roger já se acostumou, sabe que não adianta recusar a oferta. Agora ele está concentrado, preparando lâminas e fazendo anotações.
Neide inicia a limpeza. Coloca as bandejas dentro do tanque com água, onde dissolve um produto desinfetante. Esteriliza também os outros instrumentos utilizados na operação, levando-os ao final para a estufa.
Demora mais quarenta minutos até que o professor separe seu material de pesquisa no congelador, e, no momento em que está colocando o coelho morto na embalagem branca, Neide retira o animal de suas mãos.
Deixa que eu faço o resto, ela diz.
Depois que o pesquisador vai embora, Neide esteriliza a bancada com álcool. Já é tarde, e ela ainda vai pegar dois ônibus, pensa, retirando o jaleco. Não pode esquecer de cobrir as gaiolas. Nem de colocar mais água nos bebedouros.
Antes de sair, ela ajeita o coelho morto na sua sacola, penteia o cabelo e lava as mãos. Tem esse hábito. Odeia o cheiro de amônia do laboratório.
Você viu meu celular? Pergunta Roger, entrando de supetão.
Neide começa a andar pelo recinto ao lado do professor, vasculhando a bancada e todos os locais onde o telefone possa ter sido esquecido.
De repente, ela nota que está deixando um rastro de sangue pelo caminho. O líquido escoa da sacola de lona, sujando também sua blusa e calça. Ela se agarra à saca, afobada, constrangida, como se pudesse estancar o vazamento.
O professor não parece surpreso. Por um segundo, os dois permanecem em silêncio, frente a frente, sem se olhar.
Neide, diz Roger, depois de um longo suspiro. E não sabe como continuar.
Nós comemos coelho lá em casa, ela confessa.
Eles estão cheio de substâncias, cheios de venenos, afirma Roger.
Eu gosto, diz Neide, ainda sem coragem para encarar o homem.
Faz tempo?
Ela balança afirmativamente a cabeça.
Faz mal para sua saúde, ele insiste.
Eu não ligo, professor. Eu gosto.
Mais um silêncio.
Você não devia fazer isso, ele repete.
E caminha em direção à saída. Já está na porta, quando Neide pergunta se ele vai denunciá-la.
Não, ele responde.
O senhor é muito bom, ela diz. Feliz Natal.
Feliz Natal, ele responde.
E bate a porta do laboratório.

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