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Raízes - Ana Cristina Silva


O Delinquente

2014-03-31 00:00:00

Afonso nunca falava a ninguém da sua infância triste, nem da perna manca - nascera com uma perna mais curta do que a outra - que tantos dissabores e zombarias lhe tinham trazido. Até a mãe morrer havia sido uma criança como tantas outras, porventura mais protegido por causa da deficiência. A mãe não possuía família e fora entregue ao padrinho que, se segundo dizia no bairro social, talvez fosse o seu nunca confessado pai. O padrinho era um cinquentão solteiro, de nome Castanho, que possuía uma drogaria no bairro. Comparativamente à mãe, o padrinho tinha algumas posses, no entanto Afonso viveu com ele como parente pobre, sem direitos nem possibilidade de queixa, num estado de incerteza que ultrapassava tudo o que uma criança conseguiria aguentar. Tinha cabal consciência de poderia ser expulso do seu quarto e da casa se fizesse o mínimo disparate. A sua estada em casa do senhor Castanho dependia dos caprichos dele, não do seu afecto ou da sua clemência para com um rapaz que se suspeitava poder ser seu filho.

Até aos dez anos Afonso fez sempre o possível por obedecer ao padrinho. Ia da escola para a drogaria para ajudar na loja. Só saia de lá às sete horas. Passava o tempo a varrer e a limpar a loja. O padrinho não lhe batia, mas detestava ouvir barulho e sobretudo não queria ver nada sujo. Por isso, quando voltava para casa, tinha de pedir autorização para tudo, para ir a casa de banho, para preparar o jantar. Também nunca tinha permissão para ir brincar para rua. O senhor Castanho queria saber com rigor onde ele se encontrava como se temesse que o pudesse surpreender a qualquer momento a cometer infâmias ou a contaminar a casa. Cada movimento do rapaz precisava do consentimento do padrinho e, se não estava em casa, fechava-o à chave no quarto, devendo Afonso aguentar a fome, a vontade de urinar até à sua chegada.

Aos poucos, Afonso foi percebendo que o padrinho era um obsessivo da limpeza. E se ele tocava em alguma coisa, era obrigatório limpar. Por isso, o rapaz tinha de ter o cuidado de não deixar nenhum rasto de deslocações não autorizadas pela casa. A toalha usada para limpar as mãos deveria ficar tão seca como estava, se mudava algum objecto de sítio deveria deixá-lo na mesma posição, em qualquer incursão à cozinha tinha de evitar qualquer mancha de lama no tapete ou uma marca de sapato que pudessem delatar a sua passagem. O controlo exercido era tão apertado que Afonso tinha de suplicar ao padrinho para beber um copo de água.

O único momento de liberdade acontecia quando estava na escola, só que para Afonso a escola era um lugar detestável e a sua expressão sempre vaga, como um desses anjinhos de igreja - com a diferença que não estava nu, mas vestido com roupas grosseiras – irritava o professor. Mesmo depois de ralharem com ele, o rapaz mantinha aquele ar ausente, sem absorver quase nada da lição.

Aos treze anos revoltou-se. A janela do minúsculo quarto do rés-do-chão abria-se para a noite opaca. Era por ela que Afonso costumava saltar para brincar com os outros miúdos da rua. Numa dessas noites travou conhecimento com dois assaltantes de bairro e começou a fazer-lhes recados. Os rapazes com quem trabalhava, Luís e Maçarico, com cerca de dezoito anos e consideram-no um rapaz com nervos de aço quando ficava de vigia durante os assaltos a estabelecimentos do bairro. Ninguém desconfiaria de um aleijadinho. Depois de meia-dúzia de trabalhos desses, e algumas gorjetas de cinquenta euros, ganhou suficiente coragem para enfrentar o padrinho. Deixou de andar de meias pela casa como os tontos de filmes mudos. O Senhor Castanho, depois de o avisar várias vezes para se descalçar, pô-lo fora de casa.

Nesse mesmo dia, Afonso vingou-se. Sugeriu aos amigos que assaltassem a drogaria do padrinho. A aniquilação do Senhor Castanho não oferecia dificuldades. Sabia tudo dele e dos seus pontos fracos. Pior do que roubar-lhe o dinheiro da caixa seria desarrumar-lhe o estabelecimento. Era essa a sua intenção, fazê-lo sofrer, sujando a loja. Pela primeira vez participou no assalto com a cara tapada com uma meia.

Passava pouco das sete quando entraram na loja. O padrinho ainda não saíra. A escuridão de fim de tarde tornou as coisas mais perigosas. Afonso ficou à porta, observando Luís e Maçarico entrar com a pistola à cintura. Os dois jovens assaltantes repetiram várias vezes a mesma coisa – “Passa para cá a massa” - como se receassem que o Senhor Castanho não compreendesse. Pediram-lhe o dinheiro, mas o padrinho teve medo das mãos sujas dos assaltantes e permaneceu imóvel. Depois tudo se passou muito lentamente. A raiva foi crescendo. O Luís enervou-se e fez um gesto brusco. Afonso ouviu o disparo, viu o corpo do padrinho estendido no chão e o medo no rosto daquele que acabara de matar, medo pelo que poderia acontecer. No pânico que se apoderou dos três, todos sabiam que já não controlavam nada.

Afonso fugiu sem esperar por ninguém. Os outros também debandaram. Era apenas um miúdo manco, tentando andar muito depressa, porém, atrás de si, imaginava as casas a gritar, uma multidão a virar-se contra si pronta a acusá-lo de ter sido cúmplice na morte do padrinho. Gostaria de escapar e esquecer tudo, mas para um crime daqueles haveria sempre castigo. Não sentia verdadeiramente remorsos. Tinha sido um terrível acidente, um momento de obnubilação, de pânico. Se o padrinho não tivesse esticado a corda e levado as coisas longe demais, se tivesse entregue o dinheiro nada teria acontecido. Causava-lhe um certo pesar, sentia-se um pouco perdido, mas não fora ele quem puxara do gatilho. Depois de ter percorrido a memória e de nada de nitidamente afectuoso ter encontrado, pensou que, no fundo, a morte do padrinho era-lhe indiferente.

Naquele bairro havia apenas um simulacro de justiça, havia muitas coisas que não se podiam esclarecer, considerava a polícia, ou então não mereciam o esforço nem o tempo nem o risco. Ninguém foi acusado pela morte do Senhor Castanho.

Mesmo assim, Afonso afastou-se do bairro. Passou a ser um miúdo das ruas de Lisboa que abandonou a escola. Vivia de esmolas. Dormia onde calhava e comia quando tinha dinheiro. Todos dias por volta das seis horas, a cidade agitava-se e as pessoas começavam a contar as horas para regressarem a casa. Nessas alturas, ele deslocava-se lentamente para os pontos onde havia carrinhas a distribuir comida. A maior parte dos presentes tinha fome, ansiedade que transformava os rostos, retorcendo-os. Depois de comer seguia os mais velhos para abrigos.

Só meses mais tarde Afonso regressou ao bairro. Luís e Maçarico não tinham sido presos e continuavam com a sua vida de assaltos. Não viram nenhum impedimento para que Afonso continuasse a trabalhar para eles, apenas nunca o integraram nos grandes golpes. Os ganhos eram escassos, mas houve uma altura em que Afonso foi quase rico. Ensinou um esquema para enganar homens casados a uma das suas amigas do bairro. A rapariga ainda era menor, tinha apenas catorze anos. O nome dela era Clarisse, mas chamavam-lhe Quicas. Era uma jovem bem torneada com um vistoso cabelo louro, daquelas raparigas sobre os quais os homens vagueiam e cujos olhos devoram. Era muito frequente ir ao café e ter um homem mais velho, de aliança no dedo, à espera dela à porta para lhe dar boleia. Ela nunca aceitava até que Afonso lhe deu a ideia de os levar a um bar e embebedá-los. Depois poderia até subir com eles a um quarto, antes de começar a gritar que era menor. Os tipos iriam ficar tão assustados, que pelo seu silêncio, e sem que ela tivesse de fazer nada, iriam dar-lhe o dinheiro que ela pedisse.

Durante seis meses realizaram golpes. Afonso ficava de guarda e passou a dormir em pensões e a tomar banho. Um dia, Quicas apaixonou-se por uma das suas vítimas e desapareceu sem deixar rasto. Afonso viu-se de novo sem dinheiro nem maneira de o obter.

Passaram, entretanto, quatro anos. Afonso viveu sempre na rua. O tempo foi avançando sobre o rapaz, sigilosamente, deixando as suas marcas, tornando-o mais resistente e mais amargo. Os dias apareciam todas as manhãs com o seu semblante invariável, garantindo-lhe que tudo prosseguia mal.

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