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Raízes - Lídia Jorge


TRÊS FILMES NA PAREDE

2016-08-22 00:00:00



1.

Nessa altura, Lisboa era branca, a nossa memória era branca, as nossas vidas eram dessa mesma cor, e as paredes do Técnico também. Certa noite de sessenta e sete, choveu tanto sobre a cidade branca que não se conseguia sair do Monumental, os táxis tinham desaparecido, e as pessoas iam desaparecendo debaixo de água. Ninguém dava por isso, porque a rádio era branca, a televisão era branca e os jornais do dia seguinte tinham ficado brancos sob o efeito do lápis azul. Só muito depois se soube que nessa noite morreram setecentas pessoas e ficaram desalojadas mais de mil. Na parede branca do Técnico, na noite seguinte, alguém escreveu ABAIXO, mas não chegou a escrever o nome completo de quem deveria baixar. Quando, pelas oito horas da manhã, chegámos para incorporar as brigadas dos estudantes que iam desentupir casas entaipadas de lama até ao teto, já tinham levado quem pintara ABAIXO e já haviam pintado de branco a parede branca. Eu estava lá, seguiria para Alhandra, durante dois dias a escavar a casa de um alfaiate. Havia moldes no alto das árvores e alfinetes espetados nas telhas. No país, ninguém sabia dos mortos, ninguém sabia das nossas brigadas. A brancura era imensa, era quase total. A parede do Técnico olhava-nos branca, não bem branca, mas amarelado branco, era igual. Branco, ou amarelado branco, éramos então uma geração amordaçada.

2.

Em setenta e quatro, a geração que viu chover na noite de sessenta e sete, foi para a rua gritar de alegria porque finalmente havia uma Revolução em Portugal. Essa é uma história que ninguém consegue contar por completo. Para muitos que a desejaram tanto quanto respirar, ela não tem narrativa possível. Poesia, História, Arte, Ciência Política, Milagre, impossível. Talvez as paredes, talvez elas possam dar uma imagem do que foi a alegria de viver em liberdade. Talvez a parede do Técnico, por exemplo, possa contar. Não me lembro bem dos detalhes, pois à distância misturo as imagens, as cores e as formas. Talvez eu transporte de outros lugares para a parede do Técnico, que antes eu tinha visto branca, de brancura absoluta, imagens que na realidade não lhe pertençam, figuras que provêm de outras paredes. Misturo sobre ela, a parede branca que nesses anos viu tanto e tão pouco, a olhar para a Alameda, as sete cores garridas da Revolução dos cravos. Misturo os rostos gráficos da classe operária, as imagens de brinquedo dos navios carregados de marinheiros triunfantes, as ceifeiras de lenço e chapéu no meio das espigas, os metalúrgicos no meio de engrenagens, e os camaradas heroicos, másculos, magros, levando a grande bandeira vermelha nos punhos, boinas bascas na cabeça e grande sabedoria libertária nos cérebros iluminados. Seguros, triunfantes, um mundo caminhando reto, até os animais, borboletas e cães, desenhados na parede, cantavam. Os heróis pintores subiam aos andaimes e desenhavam a várias cores os foguetes vermelhos da revolução em marcha. Muitas das imagens até eram reconhecíveis, tinham feito viagem num tempo datado, mas para nós eram inaugurais, nasciam naquela altura, e se vinham de longe era melhor ainda, era para nos salvar. Graficamente, umas vinham da China, outras da grande URSS, outras provinham até de outros espaços mais solenemente trágicos, no decalque heroico do triunfo, apresentavam a mistura explosiva da inocência das bonecas com a forma embevecida das artes totalitárias, mas para nós, isso pouco importava. Se a parede tinha sido branca, o que interessava era pintá-la com os ícones que estavam à mão. Eram aqueles dias em que a revolução se julgou operária, a mudança se julgou definitiva, a crença na organização das multidões se julgou popular. O engano era doce, o perigo era grande, a esperança, ilimitada. Eu estava lá. Garatujando a argamassa, violando a superfície, transgredindo, derrubando para sempre a cor amarelada, a cor baça da parede branca. Durante quantos anos, esse filme da Revolução ficou pintado na parede do Instituto Superior Técnico a lembrar aquele corte no tempo?

3.

Então o tempo pôs-se a passar.

É bom que a paixão não incendeie as ruas por demasiado tempo. Existe uma lei escrita em qualquer parte sobre esse cansaço das marchas populares. Há que ser sábio e paciente com as ondas da história. Pouco a pouco, a película daquele filme colorido começou a desmaiar, a vida a procurar os seus caminhos de acalmia, carro, serão, janela com cortinados brancos voando sobre o balcão, histórias de amor que davam casamentos e filhos, contas bancárias, viagens e suas histórias de aventura para compensar a não aventura do quotidiano sob controle. Ah! Negócios pequenos, grandes, claros, escuros, coisas distantes, abstrações importadas, deixai-nos ir, pois se o mundo vai, iremos com ele para onde ele for e porque somos tantos na mesma direção, lá existirá um rumo. Paredes onde se pintou o arco-íris da Revolução, agora, vota aqui que eu te dou paz, vota aqui que eu te dou fartura, vota em mim para que descanses, que eu te darei a força do meu músculo e a verdade da minha mente iluminada pelo verbo que, entre as vinte horas e a meia noite, no pleno da campanha me sai do coração. Mentira. A parede do Técnico encheu-se de mentiras, tantas e tais umas sobre as outras, que as chuvas com cinco anos de intervalo não apagavam as suas sobreposições. E nós ralados. O melhor mesmo era pintar, de uma vez por todas, a parede daquela cor antiga. E foi assim que a parede ficou. E lá está. É branca, amarelada de branco, a cor que lá está. Lisa, não tem no dia de hoje um único risco, a parede, nada de nada, nem um graffiti inocente, nem uma pinchagenzinha decorativa. A arte urbana, blasée, filha neta da transgressão nova-iorquina, pop e rap, foi pintar-se para outro lado, em espaços delimitados, concertados, promovida, talvez paga. Mas ali, não, a parede do Técnico continua branca. Imaculadamente amarelada branca. E como eu assisti à noite de sessenta e sete, tenho medo daquela parede branca, terrivelmente branca, imóvel, à espera. Mas o sobressalto é meu, ninguém mais precisa de se sobressaltar. Porque a raiva existe, sim. Quem descrê do poder da raiva descrê da configuração humana. Eu creio no instinto da justiça e por isso acredito no poder da raiva como primeira espada . É assim, os murais mudaram de lugar, e eu sei para onde foram. Nos dias que passam, cada um leva o seu no bolso do casaco. Os baldes de tinta são agora uma clicagem. Provavelmente os enraivecidos não precisam mais daquela parede para escreverem nela o amor, a raiva, o amor. Tenho a certeza de que a terceira parte do meu filme vai passar num outro espaço.

Lídia Jorge

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