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Raízes - João Pedro Marques


Salazar de relance

2010-07-19 00:00:00

Salazar de relance

Por mais improváveis que sejam as razões e por mais ínvios que sejam os caminhos, quando ando de táxi a conversa resvala invariavelmente para o tempo de Salazar. Para muitos dos taxistas que me conduzem, esse tempo corresponde a uma Idade de Ouro em que o país seria estável, honrado e tranquilo. Eu não tenho exactamente a mesma opinião e dessa divergência costuma nascer uma pequena conversa, às vezes uma pequena polémica. Que nada tem de invulgar, aliás. Quarenta anos depois da sua morte, o país continua a arrepanhar-se em torno da figura de Salazar como se viu aqui há um ano ou dois quando o ditador foi eleito, num concurso promovido pela RTP, como “o maior português” de todos os tempos.

Muitos dos taxistas que acreditam piamente nos resultados da receita “Deus, Pátria e Autoridade” — e no cozinheiro beirão que a cozinhou, claro está — não têm idade suficiente para saber como era, nunca viveram no Portugal de Salazar. O que, obviamente, não significa que não possam ter uma opinião sobre o assunto. Todavia, a memória aprendida que poderão ter é diferente da memória vivida dos que por lá andaram. Ter estado no Portugal de Salazar proporciona um conhecimento diferente, mais sentido, das coisas.

Lembrei-me de tudo isto muito recentemente quando David Brion Davis, um prestigiado professor de Yale, me pediu que interpretasse e contextualizasse algumas passagens de um velho diário de viagem feito pelo seu pai em 1941. Nesse ano, o senhor Clive Davis seguia para Itália como correspondente de guerra e acabou por ficar várias semanas retido em Lisboa. Enquanto esperava a obtenção de autorização e passagem para prosseguir viagem — que não chegaria a obter — este turista acidental dedicou-se a visitar a cidade e arredores e a descrever, ainda que de forma sucinta e despretensiosa, o que os seus olhos viam. E que via o senhor Davis em 1941? Primeiro, a beleza e o pitoresco: o amplo estuário do Tejo, ladeado de colinas verdejantes e pejado de veleiros. Depois as ruas estreitas, cruzadas por carros europeus — os táxis da época eram, sobretudo, Austins — e onde o cheiro a peixe se entrelaçava com o perfume dos transeuntes. Apesar do cheiro, as ruas de Lisboa eram, na sua opinião, mais asseadas do que as de muitas cidades americanas. Problema sério era, isso sim, o ruído. O senhor Davis garantia que a chinfrineira começava bem cedo, ainda antes das 7 da manhã, mesmo aos sábados, com a gritaria gutural das peixeiras — de canastas à cabeça e sempre imundas — e dos vendedores de lotaria. A ladaínha destes últimos durava todo o santo dia e ouvia-se em todo o lado. Eram centenas de cauteleiros, homens, mulheres e crianças, que, à razão de dois ou três por cada quarteirão, se infiltravam constantemente nos cafés e nas recepções dos hotéis, prometendo, em altos berros, a sorte grande. O senhor Davis concluiu, muito compreensivelmente, que a lotaria constituía a maior indústria da zona lisboeta, talvez mesmo de Portugal.

O que, aliás, fazia sentido, uma vez que as receitas do jogo revertiam para obras de caridade de que Portugal manifestamente carecia. Em Lisboa havia muitos pedintes, muitas prostitutas e era comum encontrar pessoas com as roupas remendadas e de chinelos (apesar de ser Janeiro) ou até descalças. O nosso correspondente de guerra teve ocasião de visitar os arredores, e ficou seriamente impressionado com o que viu, sobretudo na margem sul. Em locais como a Trafaria ou Almada viu-se rodeado por legiões de crianças e adolescentes andrajosos, cobertos de feridas e pústulas, que se dependuravam no seu casaco pedindo esmola ou cigarros.

Após algumas indagações o senhor Davis constatou que os salários eram baixos (em certos casos, baixíssimos). O caixa de um banco ganhava qualquer coisa como 70 dólares/mês. Concluiu, também, que 40% da população era iletrada, algo de que já suspeitava pois boa parte dos taxistas que conheceu não sabia ler. A ineficácia do funcionalismo era geral e, em sua opinião, “tipicamente portuguesa”. Nenhum dos funcionários com que teve de lidar — na polícia, por exemplo — percebia patavina de inglês mas todos fingiam que dominavam o idioma, o que gerava consecutivos mal- entendidos e bloqueios.

Nem tudo era negativo, porém. As relações inter-raciais pareciam mais harmoniosas do que nos Estados Unidos e não raro viam-se mulheres brancas acompanhadas por negros e pela respectiva prole mestiça, sem que isso causasse espanto ou inquietação nos transeuntes. Portugal tinha uma baixa taxa de criminalidade que os observadores atribuíam à excelente polícia e à dureza das medidas punitivas. Davis registou essas informações no seu diário, ainda que tivesse sérias dúvidas quanto à razão de ser da placidez portuguesa. Suspeitava, por exemplo, que se roubavam poucos carros em Portugal porque a generalidade das pessoas não sabia conduzir.

Apesar da pobreza e da ignorância, os portugueses pareciam felizes, certamente mais felizes do que muitos trabalhadores bem pagos nos Estados Unidos. O que lhe parecia tanto mais insólito quanto, do ponto de vista político — um assunto que interessava fortemente o senhor Davis —, Portugal vivia manifestamente estrangulado. É certo que não havia sinais demasiado ostensivos de ditadura militar. Viam-se soldados pelas ruas e muitas crianças em uniforme. O nosso turista suspeitava que entre a juventude haveria grande simpatia pró-nazi e fascista e já ouvira dizer que a Legião Portuguesa teria qualquer coisa como 100 mil homens. Mas nada disso era omnipresente ou asfixiante como sucedia na Alemanha ou em Itália. Todavia, se a militarização do regime era, por assim dizer, relativamente discreta, a ausência de liberdades era indisfarçável e chocante. Não havia liberdade de reunião nem de expressão e uma pessoa podia ser presa por criticar o governo, mesmo quando o fizesse em conversa privada. Entre as camadas oposicionistas havia uma enorme dose de insatisfação mas, ao que Davis apurou, não existiam fundadas esperanças de que essa insatisfação desembocasse numa mudança política. Como é que poderia organizar-se o que quer que fosse se não existia uma imprensa livre, liberdade de expressão ou de reunião? Talvez apenas a partir de movimentos secretos que conseguissem resistir o tempo suficiente para esperar pelo momento justo para agir. De outro modo seria difícil ou impossível. A noção da quase invulnerabilidade do totalitarismo impressionou-o a tal ponto que teve o cuidado de a registar, em letra gorda.

Esse totalitarismo tinha um nome: Salazar. Davis dedicou várias páginas do seu diário a descrever esse homem que vivia em quase reclusão e que nunca se ria. Os problemas sociais e humanos não pareciam preocupá-lo sobremaneira, o orçamento era mais importante do que vestir e alimentar os desvalidos. Salazar tinha o apoio das classes média e alta que lhe louvavam o facto de ter saneado a economia e de ter conseguido manter o país fora da guerra. Mas o apoio das classes média e alta não implicava que Salazar tivesse necessariamente a oposição das classes humildes. Em bom rigor, os pobres pareciam indiferentes aos problemas da governação. A razão dessa aparente indiferença escapava ao entendimento de Davis mas era óbvia para as classes dominantes. Por motivos que o diário não esclarece, o correspondente de guerra americano privou com um representante da alta nobreza, alguém que designa por “Duke of so and so”, que vivia num antigo e desmesurado palácio e que, outras referências no texto, permitem supor que se tratava do Duque de Saldanha. Jantou várias vezes com o Duque e a Duquesa, acompanhou ambos a espectáculos públicos e ouviu-os dizerem, com orgulho, que o povo português era simples e fácil de satisfazer. Por que diabo haveria gente satisfeita e frugal de se preocupar com a governação?

Eis aqui a Lisboa salazarista de relance. Ou melhor, a memória que um americano de passagem guardou dela. Convém lembrar que a memória e o esquecimento vão a par e que houve certamente muitas coisas que o senhor Davis esqueceu ou não registou. Deixou-nos, no entanto, muitos pormenores saborosos e significativos que não sendo a última nem a decisiva palavra sobre o universo salazarista podem, ainda assim, ajudar-nos a construir um quadro mais pleno sobre o passado.

Os taxistas nossos contemporâneos tendem a esquecer esses pequenos pormenores. Esquecem-se, nomeadamente, de que sabem ler e escrever e até falam — ou, pelo menos, “arranham” —, algumas línguas estrangeiras. Muitos têm casa própria e filhos licenciados e, sobretudo, têm a liberdade de expressão que lhes permite idolatrar em público um líder ditatorial como Salazar foi. Estou certo que o senhor Davis, se regressasse agora a Lisboa, saberia ver e valorizar essas minudências.



João Pedro Marques

Lisboa, 4 de Julho de 2010

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