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Raízes - Nuno Camarneiro


Conto de Dar aos Dedos

2013-01-28 00:00:00

Lembro-me bem porque era eu. Dias como festas porque éramos novos e tocávamos à campainha e os amigos desciam à rua onde vivíamos. Todos, sempre.

A bola, a bicicleta, os livros de BD e os outros. Vivíamos em casas por detrás de campainhas e de mães, o tempo enchia-nos os sapatos como areia e valia o mesmo. Os segundos que agora não tenho foram gastos em matraquilhos e em máquinas de dar e receber pancada. Aprendia-se tanto aos murros como a ler romances. De resto, estávamos todos vivos e brincávamos a perder dias e a dar porrada.

O Carlos ainda por lá anda, deve andar, nunca mais ninguém o viu. O Carlos era uma criança dotada, sabia mais que nós e punha o nome nas máquinas. Para mim ficou ali, criança dotada para sempre, agarrado à máquina a olhar para os parvos em que nos tornámos. Somos tantos a ser parvos e o Carlos a dar pulos até ao tecto e a deixar o nome de arte: “Maléfico”.

O Pedro gostava de carros, agora é só um que tem um carro. O Rui queria ser cientista e hoje é triste e cientista. Eu também tinha as minhas ideias e vontades, tão vagas, tão gerais, que quase todas se cumpriram. Até estar com uma mulher e fazer porcarias como nas revistas. As mulheres não têm onde deixar o nome mas algum dia alguma me há-de calhar com tatuagem nos rins: “Maléfico” e o cabrão do Carlos a rir-se de dotado.

Às vezes cruzamo-nos mas já não sabemos falar, tontos e torpes que ficámos. Já ninguém sabe truques, os segredos que temos dormem connosco e é como se não servissem. A crescer aprendem-se artes e esquecem-se truques, ficamos sábios e pouco espertos. Só que não ficamos sábios, é isso, ficamos só assim.

A vida é que nos tramou, a idade é que nos tramou, o mundo é que nos tramou, nós é que nos tramámos. O Carlos não. Tenho uma cicatriz na testa e outra na perna, depois virei-me para dentro. O que vai num corpo tão grande, faltam-me truques para o corpo e para tudo o que tenho.

Resisto a mariquices, saudades e tal, mas às vezes falta-me uma campainha qualquer, carregar num botão e ouvir uma voz eléctrica que pergunta para que eu responda: “sou eu”. Um amigo a descer escadas e eu escondido a preparar um susto. Depois porrada e correr depressa a fugir ou à procura de qualquer coisa.

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