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Raízes - Ana Cristina Silva


Suicídio

2011-09-20 00:00:00

Suicídio

Quando desliguei o telefone, nessa manhã, sabia que apenas tinha no banco novecentos euros, tendo acabado de contratar o meu próprio assassinato por nove mil euros. De seguida peguei na chávena com as borras frias de café, saí da sala e desci as escadas para o jardim, onde não estava ninguém.

Era assim desde que me divorciara, raramente havia alguém por perto e o próprio jardim estava repleto de destruição. Parecia haver mais vento durante as noites, desde que o meu marido partira há seis meses, as árvores precipitaram-se e curvavam-se em direcção ao solo, as folhas, como tudo o resto, voavam desordenadamente, amontoando-se nos canteiros, entupindo o algeroz, aderindo aos espaços húmidos da terra. Há muito tempo que não me dava ao trabalho de o varrer, a minha tristeza conjugava-se com a desolação do quintal.

A dor era um objecto que subia pelo corpo. Há meses que não pensava correctamente. Pela primeira vez, em semanas, senti-me serena. Momentaneamente imaginei que aquele estranho telefonema nunca acontecera. Até ter tomado a decisão de procurar pelos meus próprios meios um assassino, deixara-me enclausurar na dor. Amar apaixonadamente durante de dez anos e ser abandonada é como ir num barco e enjoar, sentes-te a morrer, mas a tua mágoa nunca é percebida pelos outros como a devastação que realmente é. Mergulhar no martírio do desamor transforma em dissolução todas as outras experiências. E, nas margens do desespero, não existe um observador que nos aponte com um dedo, que nos murmure ao ouvido outros prodígios da vida, ou que nos indique a existência de homens que ainda nos poderão amar. Uma alma neste estado alimenta-se da cegueira das trevas. O meu marido tinha partido, mas continuava lá em casa como uma doença imaginária que acabaria por me matar a sério. E a prova estava no telefonema que recebera de um assassino.

A dor sabia-me melhor do que qualquer consolo. Na verdade não queria resgatar-me da escuridão porque o meu sofrimento implicava ainda uma réstia de comunicação com o meu marido e anulava parte da solidão mortífera a que me sentia votada. Francisco fez as malas num sábado de Outubro e, nesse fim de semana, foi instalar-se no apartamento que alugara para a amante – onde há anos, vim a saber mais tarde, já habitava o seu coração. A novidade de que ele me abandonara demorou um mês a espalhar-se entre amigos comuns e colegas de trabalho. Os conselhos vieram então, em catadupa, sobretudo da parte de velhas amigas que também já tinham passado pela experiência da separação. Evidentemente deveria vingar-me, ou pelo menos distrair-me, passar à frente, arranjar um amante, esquecer. Afinal, tinha pouco mais de quarenta anos. O esquecimento era, aliás, das palavras mais realçadas como se o fim de um casamento não fosse assim tão diferente de despejar uma casa, trancar as portas, enrolar os tapetes e deixar os pensamentos caírem lentamente num vazio de memórias. Ninguém se referia ao desamparo de silêncio em que a casa mergulhara, nem ao deserto que se viera instalar no espírito. Eram assuntos proibidos.

As minhas amigas destacavam a necessidade de “esquecer”, o que era exactamente o que eu menos desejava. A simples ideia de deixar de amar o meu marido causava-me horror. Receava menos o sofrimento do que a perda daquela tristeza que testemunhava como o meu afecto se mantivera intacto, tendo sobrevivido à traição e às inúmeras infidelidades. Sabia que era loucura viver numa ordem que não tinha outra existência senão a de mulher abandonada. Facilmente podia ser considerada uma demente. Tinha perfeita consciência de que existia algo de patético nesta ausência de expectativa, mas perder-me dos meus sentimentos era reduzir-me a nada, não ser ninguém.

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