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Raízes - João Tordo


2012-08-01 00:00:00

Há algum tempo li, numa coluna do escritor Javier Cercas, que a razão pela qual tinha deixado de fumar – ele, que é espanhol e fumava desalmadamente – tinha sido a consciência súbita de que não era ele quem fumava os cigarros, mas os cigarros que o estavam a fumar a ele. Deste modo, antropomorfizando o tabaco e negando que tal ideia seja uma paranóia dos anti-tabagistas (ou coisa de bruxo), explica muito racionalmente que, na verdade, o fumador nato que julgava ser, numa nação de fumadores natos, não passava de alguém sem personalidade que fazia precisamente o mesmo do que toda a gente em seu redor, uma coisa de que não precisava, de que nem sequer gostava, e que lentamente o estava a matar.

Comparado com Espanha, em Portugal não se fuma. Ou, o que é mais exacto e mais correcto, em Portugal fuma-se de vez em quando e em Espanha deixa de se fumar de vez em quando, o que significa que, longe de terem acatado as ordens de Bruxelas para a extinção do fumo em lugares públicos, os nossos vizinhos cagaram as óstias e as mães e continuaram a fumar ostensivamente nos bares e nos restaurantes e nas ruas, indiferentes aos professores de religião e moral que, dos píncaros da Europa, nos dizem o que pensar e o que fazer. Uma vez mais: comparado com Espanha, em Portugal fuma-se de vez em quando; somos mais obedientes, mais civilizados e, infelizmente, tememos mais o poder germânico que lidera as hostes e que nos manda matarmo-nos lentamente na solidão própria dos hospitais psiquiátricos. Respeitamos, assim, a lei nos restaurantes e nos bares; e, contudo, continuamos a fumar de vez em quando com a determinação, a humildade e o estoicismo que nos é característico. Isto é: numa situação de temperaturas mínimas, o português será visto a proteger o cigarro com as duas mãos, sofregamente puxando o fumo, enquanto a tempestade de granizo lhe soterra o carro, enquanto o espanhol será visto aos gritos atrás do balcão de um restaurante de não-fumadores, cagando as óstias e as mães, um cigarro aceso entre os dedos enquanto reclama a revolução e a guerra civil se não o deixarem fumar dentro do estabelecimento. E, assim, fumará longe da tempestade a noite toda, enquanto o português se contentará com dois cigarros (quiçá dois e meio). Talvez por isso, viveremos mais do que os espanhóis, mas menos do que os teutões; talvez por isso, nunca chegaremos a compreender que não somos nós que fumamos, mas os cigarros que nos fumam a nós.

Chama-se a isto o vício da proibição. Quero dizer, não me entendam mal: eu fumo; contudo, nos últimos anos, e em várias partes do mundo visitadas, me sinto proibido de o fazer. E, portanto, quero fazê-lo ainda mais, com aquele ligeiro sentimento de culpa (tão tipicamente português) e com aquele ligeiro sentimento de vingança (tão tipicamente ibérico) de quem, privado de uma coisa que nos parecera de direito – fumar em toda a parte sem atender às consequências –, se vê agora numa clara minoria. Precisamente por causa dessa minoria, o fumador português é, hoje em dia, tão distinto do seu homólogo castelhano: é recatado, sombrio, obscuro, melancólico e, grande parte das vezes, conspiratório. Ou seja: em vez de chegarmos à epifania de Cercas – que se sentiu alguém sem personalidade –, provavelmente chegaremos à epifania contrária, aquela que nos diz que, neste país cada vez mais reaccionário, a única marca de personalidade é continuarmos a fumar como sempre fizemos, com a excepção de que, agora, esse gesto nos torna únicos.

A prova disto tive-a pouco tempo antes de escrever esta crónica. Qualquer fumador português terá notado, por estes dias, que a marca mais antiga de cigarros portugueses desapareceu, tendo sido substituída por uma marca inglesa ou americana. Afectado pelo mais grave problema do fumador – os seus cigarros serem retirados do mercado – fui a uma tabacaria e, de repente, ao olhar para o mostrador, compreendi qual seria a minha próxima devoção: um maço de cigarros chamado Che. Sim, como o Che Guevara, com uma sombra recortada do guerrilheiro revolucionário, cigarros “sem aditivos” (como se eu já não estivesse adicto ao fim de dezassete anos de fumo), próprios desta época finíssima em que os fumadores foram relegados à mediocridade. E sabem o que aconteceu? Fui ter com uma série de amigos aos bares do costume. Estava um frio dos diabos; após a primeira cerveja, os resistentes vieram cá para fora e, num grupo compacto, sacaram das luvas, dos barretes e dos cigarros. Mal viram os meus, quiseram fumá-los; fiquei sem Ches num instante. Ali, em redor do bidon com a fogueira, como vagabundos numa rua sem nome, planeámos a revolução do tabagismo. Iríamos invadir a cidade; gritaríamos ao balcão de um restaurante de não-fumadores, a plenos pulmões (ou aos que nos restam) pela guerra civil. A única coisa que nos faltava era um espanhol e, por isso, deixámo-nos estar.

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