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Raízes - Ana Margarida de Carvalho


Um caminho da manhã

2013-06-12 00:00:00

(Seguindo em passos lassos de desengonço e sujidade as límpidas pegadas de Sophia)

Não te apoquentes com a pomba cor de pedra que agoniza na berma do passeio. Nem com a baba sanguinolenta que já se lhe solta entre as penas, enquanto executa a dança macabra, de rojo a asa inútil, e os olhos laranja, pores de sol exactos, a esvair-se nas fuligens do asfalto, a esquivar-se, em manobras vãs, dos carros que estacionam, numa serenidade sobressaltada, como os olhos laranja, impassíveis, pores de sol exactos.

A dor das pombas não vem nos retrovisores.

Deixa lá, ninguém repara. Além disso, diz que são aves sinantrópicas, pragas voadoras. Transmitem histoplasmose, e é um perigo para os indivíduos imunodeprimidos, que habitam as cidades. Dá-lhes cabo do baço. Nem os gatos vadios lhes pegam, e daí a nada, quando a cidade soçobrar, esfalfada de agitação e imundície, chegam os homens do lixo, com os jactos de água de alta pressão, anestésicos dos padecimentos do dia, socorristas das mazelas e de todas as úlceras nauseabundas acumuladas. A pasta de pomba, argamassa de penas, um bico e duas patas, tenazes ainda escancaradas, há-de vogar nessa maré imunda, dissolvida com pontas de cigarro, escarros, e excrementos de cão, até à sarjeta mais próxima. Está reposta a ordem das coisas, para tudo começar no dia seguinte: a fuligem tóxica dos motores, as pontas de cigarros acesas, os excrementos de cão, os escarros, a morte de uma pomba…

Só não queria que as pequenas inclemências quotidianas da cidade te detivessem no teu caminho da manhã.  

Ignora os avisos do homem da luz afixados nas portas de entrada, a contagem resolver-se-à por estimativa. Para os editais das finanças colados nas montras, a anunciar penhoras, nem olhes de raspão - não é nada contigo. Se, numa esquina, de uma caixa de cartão encardida sair uma mão côncova de pedir, faz como os outros: passa adiante. As pessoas daqui não são cruéis, apenas implacavelmente indiferentes. E que isso não te faça desviar do teu caminho, que é o meu.       

Quando encontrares a primeira rotunda, não percas tempo, cruza-a na diagonal. Os carros agora passam pelo túnel, canos de esgoto do trânsito, escoadores de tráfego. Depois, segue a direito pela avenida, abrigado pelos toldos estafados das lojas, esburacados pelos sopros que apagam velas e reacendem fagulhas.

Como as longas separações.

Vira na primeira rua à tua esquerda, mas terás de colocar a palma em pala sobre os olhos. Um raio de sol, escapa-se, insolente, da fileira de edifícios, por entre o prédio derrocado, e atiça a aflição nas pedras da calçada, maldição do calcário, que não escapa às provocações cintilantes. São apenas três ou quatro passos em contra-luz, e regressas à clemência da sombra, e apaziguas as pupilas acometidas. Atravessa a rua assim que reparares nuns traços esbatidos, descontínuos, que outrora foram brancos e vibrantes de uma passadeira de peões. Depois vai sempre rente aos prédios que a claridade torna neutros, cor de pomba moribunda, e não leves a mal os grafitos que encontrares pelo caminho, nem os rabiscos, os desabafos, os protestos, nem as declarações de amor e de desamor, às vezes as pessoas precisam de dizer ao mundo

eu estou aqui

e as paredes são o que têm mais à mão. Além disso, elas têm ouvidos, toda a gente sabe. E os atestados de vidas não se podem censurar. Em seguida hás-de encontrar uma árvore recurva, como que em estado de embriaguez. Em tempos foi um erecto choupo, o mais exibicionista da rua, mas depois armou-se em filantropo, deteve um carro desenfreado, impediu-o, barreira viva de seivas e fotossínteses, de entrar pelo passeio adentro e atropelar os transeuntes. Agora, pena. Depena-se. Vais reparar em seu redor, as folhas que lhe caem sem alarde, antes que os serviços camarários se apercebam daquele óbito mudo. Que os autocarros, esses, vergastam a cada passagem os seus ramos pendentes, e levam enfiadas de hastes no pará-brisas para outras freguesias, e viajam assim os seus elementos em nomadismos improváveis, e talvez se refunde algures um novo título, que é, mais ou menos, a mesma coisa do que uma semente.

E quando te chegar ao nariz a agressão plástica do cheiro dos derivados químicos do petróleo será bom sinal. Quer dizer que estás próximo. O cheiro da loja do chinês guia-te até junto da minha porta. Não precisas de bater. Eu destranquei para ti a fechadura. Peço-te que não vás pelo elevador, que é dos antigos, e o solavanco do peso e contra-peso desperta a vizinhança. Sustém a respiração, se puderes, ao passares pelo segundo andar, vive lá um cão muito temperamental. E tem atenção ao terceiro degrau do quinto lance da escadaria.

O marmorista morreu antes de consertar uma falha antiga, e com ele faleceu também a profissão.  

Continua a subir, no último degrau, age primeiro antes de pensares duas vezes. Não quero arriscar que depois de tanta caminhada e escalada, depois de passares por todos os espasmos da cidade que acorda, te arrependas do teu intento. E não deposites por debaixo da minha porta, a carta que me mandas.

Sem a saliva do selo, sem outras impressões digitais que não as tuas.

Entregues pessoalmente ao domicílio. As tuas palavras fazem-me mais falta do que tu.

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