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A Opinião de Miguel Real


EROTISMO E SURREALISMO

2014-12-02

Com Perfumes Eróticos em Tempo de Vacas Magras, Manuel da Silva Ramos (MSR) assumiu, em livro isolado, uma das vertentes narrativas que há muito animava os seus romances: o erotismo. Porém, porque o fundo mais permanente do seu estilo reside no surrealismo, eis que o estatuto deste novo livro de MSR cruza o erotismo do título com um horizonte de escrita surrealista, gerando uma criação nova na bibliografia deste autor.

Segundo Natália Correia, na introdução à célebre Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965), o erotismo consiste na divinização do corpo através do prazer fruído pelo espírito, superando assim a circunstancialidade do tempo e elevando-se ao gozo de sensações eternas. O que Natália Correia diviniza no sexo, G. Bataille ontologiza, estatuindo o erotismo, no seu famoso ensaio de 1957, O Erotismo. O Proibido e a Transgressão, como restabelecimento da continuidade vital entre o corpo humano e a natureza por via da dissolução da consciência nos momentos orgiásticos. Neste sentido, embora continuando a ser tratado com recato na literatura portuguesa, que tende a confundir erotismo com pornografia, a prática erótica é hoje, época profundamente narcisíaca e hedonista, um dos apelos mais comuns e mais intensos da vivência sexual a merecer destaque na televisão e no cinema. A distinção entre erotismo e pornografia reside na recusa por parte do erotismo tanto do uso do corpo próprio ou alheio como uma mercadoria quanto de se constituir como instrumento ou objecto de humilhação e violência. Neste sentido, a pornografia encontra-se fora da literatura e da arte, considerada uma perversão da sexualidade, mas não o erotismo, tema profundamente cultuado, sendo difícil de encontrar um romancista português que sobre ele não tenha escrito algumas páginas, como se constata passando o olhar pela antologia O Erotismo Na Ficção Portuguesa do Século XX (2005), de António Mega Ferreira (colaboração de João Paulo Cotrim).

Qual a novidade de Com Perfumes Eróticos em Tempo de Vacas Magras no campo da historiografia da ficção portuguesa. Por um lado, como referimos, força a apresentação de episódios eróticos entre as personagens a uma visão estilística surrealista menos na linha de um Luís Pacheco e mais na utilização de técnicas próprias desta corrente literária, e, por outro, do ponto de vista dos quadros sociais, traz o erotismo para a rua, democratiza-o, inscrevendo no papel em forma de arte o que os olhos do autor vêem na rua e nos cafés de Portugal, país dominado hoje por uma mentalidade eminentemente promíscua, onde o marido faz clandestinamente à mulher (esposa) o que esta faz àquele (primeiro conto), deixando de haver comportamentos sexuais próprios de marido e de amante.

Porém, em geral MSR não descreve as práticas eróticas nem segundo a visão sagrada de Natália Correia (com a excepção satírica do conto “Tripas à moda de Monsieur Ramos”) nem segundo a teoria ontológica de Bataille. A sua descrição aproxima-se mais do modo como Henry Miller as expõe no papel – rápidas, voluptuosas, imoderadas, improvisadas, explorando a limite a transgressão social, e irrepetíveis, como encontros fortuitos que a prosseguirem levarão ao aniquilamento de ambos os parceiros (por todos, exemplo da p. 111 do conto “sexo à portuguesa” ou da cena passada no teleférico da p. 133).

O cruzamento do erotismo com o surrealismo gera páginas totalmente desconcertantes como, por exemplo, as dos contos “Vagina dentata” e “O homem mais perverso do mundo”), ou, do ponto de vista do non-sense, o conto “De folga”.

Neste sentido, se os contos, enquadrados pelas ilustrações realistas de João Pedro Lam, acicatam o desejo sexual no leitor, também o farão sorrir, e até rir, pelas situações insólitas descritas.



Com Perfumes Eróticos em Tempo de Vacas Magras,

Parsifal, 145 pp. 14 euros.

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