A Opinião de Miguel Real
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO - AUTOR E NARRADOR
2015-02-27Autor de uma monumental biografia de Agostinho da Silva, O Estranhíssimo Colosso, ora publicada, e alvo de uma polémica literária nas páginas do jornal Público, António Cândido Franco, especialista em Teixeira de Pascoaes e Guerra Junqueiro, ensaísta com diversíssima obra publicada, é igualmente autor de cinco romances históricos, A Saga do Rei Menino (D. Sebastião), A Rainha Morta e o Rei Saudade (2003-sobre o mito de Pedro e Inês), A Vida Ignorada de Leonor Teles (2008) e A Herança de D. Carlos (2009), um dos melhores romances editados em Portugal relativo à passagem entre a Monarquia e a República, e o volumoso romance Os Pecados da Rainha Santa Isabel, personalidade singular no campo da cultura portuguesa, António Cândido Franco possui um lugar muito especial no actual panorama da ficção portuguesa contemporânea.
Com efeito, a obra de António Cândido Franco distingue-se da dos restantes autores do campo do romance histórico português por duas características singularíssimas, que, cruzadas, constituem o sangue e os nervos da totalidade dos seus textos ficcionais.
Em primeiro lugar, o estatuto do narrador. Como se constata com evidência tanto em A Herança de D. Carlos quanto em Os Pecados da Rainha Santa Isabel, o narrador, para além de assumir o clássico papel de narrar e descrever, organizar cenas e comandar a acção, extravasa fortemente este registo clássico, assumindo um papel fortemente interventivo, autoral, identificando-se abertamente, não raro, com a visão histórica do autor. Neste sentido, os romances de António Cândido Franco mescla voluntariamente os estatutos literários de autor e narrador. Dito de outro modo, a visão histórica do autor, ostentada em inúmeros artigos académicos, encontra-se projectada nas palavras do narrador, destacando e valorizando o que é lhe é conforme, criticando ou subvalorizando o restante, assim caracterizando as personagens principais. Neste sentido, António Cândido Franco pratica um tipo de romance histórico de empenhamento social e cultural, valorizador dos atributos ético-sociais do autor, identificados com o complexo de constantes da cultura e da identidade portuguesas, como o mito amoroso de Pedro e Inês, o sebastianismo e a saudade, igualmente constantes tanto nas suas narrativas sobre a vida e obra de Teixeira de Pascoaes (de que destacamos, Arte de Sonhar, 2001) quanto nas suas peças de teatro (A Primeira Morte de Florbela Espanca, 2009).
Porém, paradoxalmente, esta asfixia do narrador pelo autor, mesclando-se, não raro confundindo-se, não abafa o investigador que existe em António Cândido Franco. Pelo contrário, os seus romances são verdadeiramente históricos, evidenciando um domínio integral dos factos políticos da época narrada, as formas de representação, as formas de governo, os conflitos sociais e institucionais, a sua expressão militar, os hinos, as canções profanas e guerreiras, os trajes civis, os uniformes militares, a mitologia heróica, os usos e costume, conhecendo em pormenor as roupas, a higiene pessoal, a alimentação, períodos de actividade e inactividade, as profissões, os instrumentos de trabalho, os modos de culto do sagrado, as orações, as liturgias, os rituais de nascimento e morte, as formas de socialização, de divertimento, os espectáculos, os comportamentos marginais, os hábitos alternativos, a topografia e a toponímia da época.
Assim, não se trata de uma deformação do romance histórico, focalizado a partir de ideias actuais, anacrónicas ao tempo diegético, um torção sobre os factos, mas de evidenciar alguns factos – factos, mesmo – que os manuais oficiais silenciam, como a fortíssima impregnação do sentimento de saudade na cultura portuguesa, a ostentação de traços femininos, bem como a visão milenarista (joaquimita do culto do Espírito Santo, celebrada por Agostinho da Silva, ou a visão quinto-imperialista de Padre António Vieira e Fernando Pessoa) presentes de um modo muito sólido na história de Portugal, singularizando-a face às restantes culturas europeias. Reside neste aspecto muito singular a segunda característica individual das narrativas históricas de António Cândido Franco, a de transmissão das constantes da cultura portuguesa por via da narração de uma intriga histórica.
Num colóquio na Faculdade de Letras de Lisboa, tivemos oportunidade de classificar a obra romanesca do autor como “neo-romântica”. Aproveitamos a oportunidade para rectificar esta primeira impressão notoriamente errada – não, não se trata de uma visão neo-romântica da história de Portugal; antes, de uma visão culturalista, isto é, a tentativa de detectar constantes culturais em factos históricos isolados, diferenciados no tempo (Pedro e Inês; Leonor Teles e a revolução de 1383/85; D. Diniz e a rainha santa Isabel; a dinastia oitocentista dos Bragança), pelas quais o autor vai tecendo uma teoria da cultura portuguesa enformadora da arquitectónica da história de Portugal na sua totalidade.
Neste sentido, António Cândido Franco, como autor, cumpre a verdadeira e básica função da escrita do romance histórico, adicionando ao prazer estético da leitura a transmissão do conhecimento da história. Porém, a ambição da escrita de ACF persegue um horizonte superior ao da mera escrita do romance histórico, juntando uma terceira àquelas duas funções habituais presentes neste género literário – a função culturalista. António Cândido Franco evidencia para o leitor, a partir de factos históricos hoje positivisticamente desvalorizados (o mito, a lenda, a visão religiosa do mundo, o maravilhoso – tão influentes sobre a realidade e a ordem da história quanto os factos positivos) a existência de um húmus existencial duradouro, de que se teria tecido o contínuo ininterrupto de atitudes, ideias e ideais peculiares, que designamos por “cultura portuguesa”.
Assim, como João Aguiar, a singularidade de António Cândido Franco no panorama da literatura portuguesa reside no facto de ser o único autor de romances históricos cujo objecto de trabalho supera a descrição do mero arranjo histórico circunstancial, envolvendo e integrando este no campo de uma teoria da cultura portuguesa.
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