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Crítica Literária por Miguel Real


1975 EM TRÁS-OS-MONTES

2015-03-18


  1. – Introdução

Tiago Patrício (n. 1979) vem se afirmando como um dos futuros grandes escritores oriundos de Trás-os-Montes, sucedendo assim a Araújo Correia, Miguel Torga, Ernesto Rodrigues, Rentes de Carvalho e outros. Na poesia, o seu único livro, O Livro das Aves, foi galardoado com o Prémio Daniel Faria 2009 e constitui, nesse ano, para o leitor comum de poesia que somos, uma fascinante novidade temática, abandonando tanto a enfática e bloqueadora poesia urbana niilista pós-moderna quanto a melancolia lírica que habita a actual poesia portuguesa.

Nascido no Funchal mas educado desde cedo em Trás-os-Montes, a figuração literária desta região nordestina não possui já, na obra de Tiago Patrício, o conjunto de imagens medievais (miséria, analfabetismo, rudeza, religiosidade supersticiosa…) que a caracterizaram ao longo do Estado Novo, nem a modernidade plastificada urbana importada pelo progresso económico pós-25 de Abril. Diferentemente, os dois romances do autor sobre Trás-os-Montes situam-se, temporalmente, no cruzamento entre aquelas duas representações sociais e culturais, captando, em retrato estético, o momento em que Trás-os-Montes ainda não perdera a sua ancestralidade ao modo do Abade de Baçal e ainda não ganhara o pechisbeque dourado dos centros comerciais e hipermercados, como se evidencia pelo seu primeiro romance, intitulado justamente Trás-os-Montes (Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís, 2011), um retrato da infância e juventude numa região ainda rural embora escrito segundo uma linguagem urbana.

  1. – Estilo

Afirmado como valor individual, à margem de escolas literárias, o primeiro romance de Tiago Patrício ostenta uma linguagem seca, pouco qualificativa, com fortíssima tendência para a depuração da frase (“sugestiva economia de expressão”, diz Vasco Graça Moura enquanto elemento do júri que atribuiu o prémio), apontando para uma narração realista que mais parece descrever do que fabular. Mil Novecentos e Setenta e Cinco, ora publicado, confirma estas qualidades estilísticas, tanto a depuração da frase quanto o realismo como limite da efabulação. Com efeito, neste novo romance, a inventividade e a ficcionalização do real acontecem com frequência, embora, como no primeiro romance, sejam dominadas por uma fixação dominante da representação do real, com hiper-valorização dos tipos sociais, em parte confundidos com as profissões dominantes nas aldeias: a Farmacêutica, a Médica, o Alfaiate, o Coveiro, o Padre… Neste sentido, se no primeiro romance é dado relevo ao pormenor íntimo da vida infantil, sem um processo de metaforização do real, no segundo é dado ao conflito social e político sem atribuição de relevo às ideologias que o fundamentam. Termos como “comunismo”, “socialismo”, “social-democracia”, ou equivalentes como “partido de esquerda ou de direita”, plataformas semânticas de metaforização do real, praticamente não constam do novo romance, evidenciando uma escrita semanticamente terra-a-terra ou, como referimos, seca e depurada. O que, em tempos de dominância da metáfora no romance português, é, de facto, uma virtude de Tiago Patrício, singularizando estilisticamente a sua escrita.

Assim, realista tanto no primeiro como no segundo romance, Tiago Patrício faz dos seus textos autênticos documentários do viver transmontano imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974, utilizando pouquíssimos regionalismos, tentando conferir universalidade psicológica e social à história e, sobretudo, às personagens. Deste modo, todos os acontecimentos, mesmo os mais extremados (como assassínios, explosões, incêndios…), são representados com extrema sobriedade, mesmo a própria exploração económica dos trabalhadores ou a violentação das mulheres (as criadas) anteriores ao 25 de Abril.

  1. MIL NOVECENTOS E SETENTA E CINCO

Como um eco literário, Mil Novecentos e Setenta e Cinco concentra todos os acontecimentos políticos e sociais maiores decorridos ao longo deste ano, sobretudo o designado “Verão quente”, numa pequena aldeia de Trás-os-Montes com intriga e personagens locais.

Metonímia de Portugal, detectam-se no romance a equivalência tanto a personalidades institucionais de Portugal nesse ano, sejam de esquerda, sejam de direita, quanto os conflitos havidos sobretudo em Lisboa e Porto e na Reforma Agrária do Alentejo e do Ribatejo. Assim, a família latifundiária e economicamente poderosa Mateus (o pai, fugido para Espanha; a mulher do pai, Aurora, em plena crise de histerismo por ver a casa invadida e os tapetes e móveis confiscados pelo novo poder político; o filho Augusto, adulto, lutador contra as novas forças políticas; Aristides, o filho menino) concentra o espaço político de direita, influenciando Abílio, o Padre, Alfredo…. Do mesmo modo, Valdemar, extremista, estalinista, radical político, Orlando, que no final se converterá à família Mateus, Horácio, Maurício, concentram as forças subversivas e revolucionárias de esquerda. Consoante a influência socialmente predominante de um ou outro dos dois grupos políticos, assim a população vai-se inclinando ora para Valdemar, sobretudo ao longo do Verão, ora, posteriormente, para Augusto Mateus. Entre as personagens, muitas delas conhecidas pelas suas profissões, como referimos, todas elas radicadas na aldeia, com excepção dos militares da “Quinta Divisão”, advindos da cidade para orientarem a revolução, destacam-se duas de qualidade estética superior, porventura porque a sua narração supera as circunstâncias políticas imediatas: o Coveiro, que fracassa profissionalmente devido à não existência de mortos durante o ano, e o marido da tia Josefina, que ambiciona suicidar-se e não o consegue, nem mesmo quando se atira a um poço.

Óptimo micro-retrato literário do ano de 1975.


Mil Novecentos e Setenta e Cinco

Gradiva, 434 pp., 17,50 euros.


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