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A Opinião de Miguel Real


MANUEL JORGE MARMELO - MATURIDADE ESTÉTICA

2015-07-07

O Tempo Morto É Um Bom Lugar – título paradoxal –, último romance de Manuel Jorge Marmelo, escritor distinguido com Prémio Literário Correntes de Escrita 2013, que, de certo modo, consagrou a sua obra como uma das mais importantes do universo romanesco português dos últimos vinte anos.

Sabe-se que, jornalista do “Público”, o autor ficou desempregado já esta década. A sua resposta tem sido exemplar: publicou em quatro anos três romances: Uma Mentira Mil Vezes Repetida (2011), pelo qual recebeu o prémio acima referido, Somos Todos um Bocado Ciganos (2012) e, agora, em 2014, O Tempo Morto É Um Bom Lugar. Com estes três romances, Manuel Jorge Marmelo, autor conhecido por algum sucesso de vendas com As Mulheres Deviam Vir com Livro de Instruções (1999) e O Amor é para os Parvos (2000), atinge um patamar de elevada qualidade estética, não imediatamente visível na maioria dos seus romances anteriores (com excepção de Sertão Dourado, 2001). É caso para dizer (ironicamente) - bendito desemprego, ou seja, bendito “tempo morto”, que, afora as preocupações financeiras e profissionais que devem ter perturbado a vida do autor, e são indirectamente reflectidas no romance ora publicado, lhe permitiu atingir, literariamente falando, um apuramento estilístico superior e uma perfeição estética de qualidade.

O Tempo Morto É Um Bom Lugar é uma construção simultaneamente realista e alegórica ilustrando a situação geral da sociedade portuguesa actual – o desemprego e frustração da realização profissional do cidadão, uma classe média empobrecida, o facto social galopante do divórcio, uma elite política e administrativa a governar contra os necessidades e os interesses da maioria da população, a promoção da imbecilidade televisiva por via de programas socialmente anestesiantes como “Big Brother”, a existência de comunidade africanas sobrevivendo nos subúrbios em bairros pobres, um empresariado especulativo para o qual o trabalhador se tornou mera carne para canhão dos seus chorudos negócios, enfim, uma sociedade decadente, apodrecida, de princípios éticos dissolutos, guiada por elites cegas que a pouco e pouco a conduzem para um abismo donde não haverá retorno, condenando Portugal à miséria económica e à indigência cultural. Neste sentido, O Tempo Morto É Um Bom Lugar, à semelhança da literatura de Rui Zink, poder ser inserido na vertente romanesca de denúncia e apresentado como um protesto de natureza de natureza política e social.

Herculano Vermelho, jornalista desempregado após vinte anos a redigir notícias que ampliavam o papel social de medíocres cliques partidárias, vê-se inesperadamente dependente do subsídio de desemprego, escasso para as suas despesas, a pensão de alimentos para Rita, a filha, e a consumação da sua pulsão de jogador.

Face à contínua falta de dinheiro, Herculano sente-se obrigado a concorrer a um anúncio de jornal que propunha um emprego de ghostwriter, um escritor fantasma ou substituto, para a escrita da autobiografia de uma vedeta televisiva, Soraya Évora, jovem cabo-verdiana da ilha de Maio, que se tornara famosa a partir da sua participação num concurso estupidificante, o “Debaixo do Olho”. Contactado pela agente Elsa, mulher-parasita e oportunista, que representa os novos e efémeros “famosos” da TV, Herculano passa a acompanhar diariamente Soraya. Mais tarde, Soraya aparece morta na cama ao lado de Herculano, que, embora de nada se lembre, se dá como culpado da sua morte.

Aqui começa uma nova e maravilhosa vida de Herculano: preso, vive um e num “tempo morto”, concluindo que não há melhor tempo para se viver, alijando-se de todas as responsabilidades que no exterior da cadeia era obrigado a assumir. Isento de direitos, está igualmente isento de deveres e, neste sentido, vive para escrever, criando, em torno da personagem Tristão de um escritor desconhecido, natural da Frihedlândia, a alegoria de uma sociedade totalitário-burocrata (pp. 78 – 101, das melhores partes do romance), escrevendo um caderno com a sua história singular, a de Herculano (primeira parte do romance), a “autobiografia” de Soraya Évora (segunda parte do romance) e convivendo (uma convivência de poucas palavras) com o escritor frustrado Bernardino Barbas (pp. 121 – 126), cuja história inventada por Herculano na primeira parte é posteriormente desmentida (p. 236). Após ter escrito desvairadamente, Herculano suicida-se na prisão, legando um conjunto de cadernos de que se desconhece o conteúdo.

A terceira parte de O Tempo Morto É Um Bom Lugar narra a investigação feita pelo jornalista veterano João António Abelha. Uma homenagem do autor a um jornalismo sério, rigoroso, objectivo e verdadeiro, sem deixar de ser igualmente emotivo, como já antes o autor homenageara a grande figura do jornalismo que foi Manuel António Pina. Numa arte de ilusionismo literário de que o autor tem sido exímio nos seus últimos romances, que, de certo modo, suaviza o seu realismo, o desfecho do romance deixa tudo em aberto, dando porém protagonismo a Elsa, indicando a possibilidade de ter sido esta a autora da autobiografia e da morte de Soraya. Terá sido? Terá sido Herculano? Não interessa saber. A história está contada e a ilusão prende a verdade nas suas teias, dissimulando a realidade e tornando a literatura a arte do encanto.

Autor de um verbo fluente, imensamente fluente, estruturado em longos parágrafos, os últimos romances de Manuel Jorge Marmelo evidenciam uma escrita dúctil, capaz de tornar elásticas as regras sintácticas da gramática e, por vezes, quando abusa de partículas de ligação, rasando a violentação da estrutura lógica da língua, nunca chegando porém a quebrá-la. A narração é, assim, encantatória (longos parágrafos, inúmeras pequenas histórias), mantendo-se sempre, porém, num campo de fidelidade ao real. Um real que pode ser espiritualizado e abstractizado, dado como alegoria universal (por exemplo, a história de Tristão), recusando no entanto sair para fora do campo do realismo, lugar natural do autor, como o evidenciam a quase totalidade dos seus romances.

Á componente realista, os últimos romances de Manuel Jorge Marmelo acrescentam a vertente de crítica e denúncia sociais, um pouco ao modo de Rui Zink. Neste sentido, atacando os actuais padrões culturais e políticos da sociedade portuguesa, os seus romances não são eticamente neutros nem culturalmente assépticos. Pelo contrário, não se tornando uma arma política, intentam, por via da sátira, da ironia, despertar a consciência crítica do leitor face à existência de uma sociedade profundamente desigual e injusta. Destinam-se, portanto, a contaminar a consciência do leitor do sentimento de revolta e, se possível, de sedição.

O Tempo Morto É Um Bom Lugar,

Quetzal, 279 pp. 16,60 euros.

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