A Opinião de Miguel Real
TEOLINDA GERSÃO - MATURIDADE ABSOLUTA
2021-07-12O novo romance de Teolinda Gersão (TG), O Regresso de Júlia Mann a Paraty, exprime uma maturidade literária absoluta, tanto na continuidade da sua obra – assemelha-se a uma espécie de cúpula dourada desta – quanto na criatividade sobre um tema difícil: as relações entre Sigmund Freud e Thomas Mann na década de 30, tendo como pano de fundo a obra de ambos e o cenário social do ninho da serpente que constiuiu a origem política do nazismo.
Divido em três partes entrecruzadas, é iniciado com Freud, que, em 1938, no exílio londrino, onde morreu no ano seguinte, pensa em Mann, já nobelizado e já refugiado na Suíça, e continuado com este, em plena República de Weimar, a pensar em Freud. É um duelo de gigantes, percebe-se que se admiram e invejam mutuamente, cada um, entre elogios, tentando apontar os defeitos e as insuficiências do outro. São os dois grandes intelectuais de língua alemã, provindos do século XIX. Para Freud, “a Alemanha regrediu milénios, e mergulhou numa barbárie a que poderíamos chamara pré-histórica”, acusa Mann de ter-se deixado comandar pelo seu “inconsciente”, tanto tomando posições ambíguas, quanto, já exilado, se apresentar como guia humanista de uma Alemanha permanente. Mann, por duas vezes, escreveu sobre Feud, elogiando-o, mas este considera-o incapaz de apreender o verdadeiro valor da Psicanálise como grande ciência do humano. Nesta fase, Freud é já contestado por alguns discípulos (Adler, Yung), sente fraquejar o ânimo de análise científica que sempre o motivara, bem como constata que a ciência que criara, a Psicanálise, desconstrutora das “pulsões negativas” do homem., não salvou a Alemanha da barbárie – e Mann surge como projecção negativa das fraquezas sentidas pelo próprio Freud. É uma “carta” (uma reflexão) profundamente vexatória para Mann, sobretudo na contínua acusação da homossexualidade deste e na sua rivalidade literária com o irmão Heinrich, o que, dialeticamente, diz muito da fragilidade de Freud em 1938.
TG mostra que as acusações entre ambos evidenciam as fraquezas dos dois pensadores. Quando Freud pensa de Mann que “o Diabo é um dos seus duplos (…). E o Diabo pode tomar forma humana, como em Fausto, o senhor sabe disso”, manifesta um pensamento que pode igualmente ser aplicado a Freud.
Enquanto Mann, em 1930, se mascara de “preceptor da Alemanha”, e veste “a pele de guia moral do país”, Freud começava a ver os seus livros queimados em fogueira, acusados de judaizantes, pugnadores de uma moral decadentista. Mann desmonta, na sua reflexão, o dúbio papel de Freud de analisador dos seus pacientes, acusando-o, de certo modo, de possuir uma cartilha dogmática, enquanto ele, Mann, o artista, possui um poder criador não atingível por nenhum cientista racional: “o senhor não consegue impedir-se de se sentir fascinado de e desejar estar no meu lugar e não no seu. O senhor daria tudo para escrever um romance. Mas desiluda-se, nunca o vai escrever. Não seria capaz”. Mann desmonta os seus romances, evidenciando serem as suas estruturas e as suas personagens pedaços encobertos da sua vida, inclusive da sua rivalidade com Heinrich, o irmão, e do seu casamento com uma judia rica, Katia.
É, porém, na terceira parte, que dá título ao romance, que a mestria literária de TG atinge a maturidade absoluta, cruzando e sintetizando as constantes permanentes dos seus anteriores romances: 1. - a exploração do universo da casa; 2. - a construção da identidade feminina; 3. - os desequilíbrios do mundo; 4. - a não diferenciabilidade entre a realidade exterior e a consciência que a apreende, com recurso da memória (cultural existencial, histórica), ou como elo ou vínculo social da passagem do tempo.
Inicia-se com Júlia Mann (Lula) idosa, perto da morte, a regressar da Alemanha a Paraty, onde nascera, na fazenda do pai, colono alemão no Brasil, para onde partira aos 16 anos, e onde vivera na infância até à morte da mãe, tendo então sido trazida com os irmãos para Lübeck para ser educada como uma alemã genuína, ela que era filha do Sul exótico e quente. Lübeck era uma pequena cidade burguesa, de costumes formais e tradicionais, à beira do rio Trave. E como regressa Júlia a Paraty? Aqui joga-se a ambiguidade referencial do ponto 4 acima referido: deita-se mentalmente ao rio e segue pelo mar até ao Brasil, “o mar era infinito e seu amigo, ou seu amante”. No percurso, recorda a sua vida. Precisava de morrer a pensaar na infância brasileira porque “Em Lubeck as famílias eram prisões, e a sociedade uma prisão maior, onde se encarceravam todas as famílias”. Júlia fora educado na severa moral protestante alemã em casa dos tias, visitando duas vezes por semana a avó Maria Luísa. O Brasil da sua infância, até aos 7 anos, significava o paraíso: “Era um tempo cheio de cores, música, cheiros, sabores, zumbidos, pássaros, animais selvagens, mar e floresta, um tempo alegre, onde tudo estava povoado de pessoas, de riso e de conversas, nas aldeias, ruas, igrejas e festas, e ela desconhecia a solidão, mesmo quando brincava ou vagueava sozinha na praia”. A morte da mãe fora compensada pela companhia da negra criada-ama Ana, mas a partida para a Alemanha e a vida fria, cerimoniosa, fundada no dever, alterara-lhe completamente a existência, exceto na realção com a avó: “Júlia saíra de um mundo a cores e entrava noutro onde tudo era a preto e branco, ou, na maior parte dos dias, cinzento. A cidade era escura, o céu era escuro, o ar, mesmo no verão, era frio, e todo aquele habitat inóspito a agredia”. Pela educação, queriam domesticá-la, tornada europeia do norte: “Queriam forçá-la a esquecer esse mundo [os trópicos], como se devesse envergonhar-se dele. Mas ela não queria esquecê-lo. Achava-o muito superior e mais belo, e era o mundo deles que não lhe interessava”.
Júlia ficará para sempre a viver na Alemnha, casara, tivera filhos, entre os quais dois escritores, Heinrich e Thomas. O leitor, para seu prazer estético, fará o favor de seguir a continuação da história, ficcionada com base em factos reais, constatando que os pontos 1., 2. e 3: acima referidos se encontram inscritos no mundo de Júlia, que, não conseguindo recuperar a sua verdadeira identidade em vida, o faz no momento da morte.
O Regresso de Júlia Mann a Paraty,
Porto Editora, 303 pp., 15,50 euros.
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