A Opinião de Miguel Real
PATRÍCIA MÜLLER - ROMANCE HISTÓRICO SEM PRECONCEITOS
2022-06-02Tendo por base o guião televisivo homónimo que escreveu para a RTP, Patrícia Müller (PM) publicou este ano A Rainha e a Bastarda, um romance histórico. Em 2016, tinha publicado o romance muito singular e de grande qualidade Uma Senhora Nunca, retrato de uma família da elite económica e social do Estado Novo com vastas propriedades no Alentejo.
A Rainha e a Bastarda é um romance histórico sem a aplicação dos códigos próprios deste subgénero literário. Tematiza a Rainha Santa Isabel e o seu enlace matrimonial com D. Dinis, bem como a guerra civil deste com o filho, o futuro D. Afonso IV. Ambientado no século XIV, retratando os costumes aristocráticos da corte no paço de Frielas, em Lisboa, Leiria e Coimbra e no convento de Odivelas, a autora não se inibe de usar por vezes – muitas vezes – um léxico atual, como se não só escrevesse sobre o passado com as categorias mentais do presente, como, ainda, envolvendo o enredo do romance de elementos policiais, sexuais e de mistério. Assim, são estas duas caraterísticas (léxico atual e envolvência de uma história do século XIV em géneros romanescos totalmente estranhos ao tempo da diegese) que perfazem a singularidade da escrita de PM neste romance.
E, permita-se-nos que, contra os leitores do romance histórico purista, que, pressupomos, constituem uma fortíssima maioria, elogiemos uma escrita assim. Lembremos o alto exemplo de O Nome da Rosa, de Umberto Eco, que cruzou com mestria o policial com o romance histórico. Mas, para não darmos outros exemplos estrangeiros, lembremos a obra romanesca de João Paulo Oliveira e Costa (seis volumes sobre o Império, de Ceuta ao Japão, publicados este século), na qual entrecruza igualmente o histórico com o policial, o romance de espionagem e abundantes cenas sexuais, como o comprova o seu último livro, A Estreia do Auto da Índia (2021), onde as intrigas sentimentais e as práticas sexuais são numerosas. Portanto, PM está muito bem acompanhada nesta sua pretensão de libertar o romance histórico da prisão exclusiva da narrativa histórica. Diferentemente de João Paulo Oliveira e Costa, que utiliza um léxico coetâneo dos séculos do início da Expansão, PM utiliza inúmeras palavras atuais, combinando-as com outras do século XIV. Conclusão: a singularidade absoluta de A Rainha e a Bastarda assenta neste à-vontade com que manipula a linguagem, cruzando as especificidades do passado com as novidades linguísticas do presente.
No trabalho sobre as personagens, nota-se uma tendência para o grotesco, rei, príncipes, rainha, nobres, aias, homens, mulheres são figurados como seres radicais, capazes do tudo ou do nada, ora cruelmente naturais, ora espiritualmente diáfanos Neste sentido, do lado dos primeiros tome-se o exemplo de Fernando José Alpoim, o “homem-bicho”; do lado dos segundos, a própria Rainha Isabel, ditadora poderosa na sua Casa, expiadora dos pecados do mundo nos sacrifícios sanguíneos que comete voluntariamente no seu próprio corpo, bem como na seu desejo (neurótico) de privação de comida (anorexia).
O trabalho de PM sobre a personagem Rainha Isabel é magnífico, dando-nos um retrato extremado, mas originalíssimo, da sua vocação religiosa, assumindo um estatuto herético (não revelamos qual, o leitor descobrirá) que raia o delírio psicótico em busca de uma pureza divina. Em 2010, António Cândido de Franco já escrevera sobre Os Pecados da Rainha Santa Isabel, mas PM eleva ao paroxismo a personalidade de Isabel, apresentando-a como uma louca, relíquia derradeira de guerras religiosas do sul de França e da Catalunha, diariamente em forçada penitência. Nas ações imponderadas, a Isabel juntam-se dois monges trajados de branco, que a defendem e a influenciam. Quem serão, a que Ordem pertencerão?
Por sua vez, D. Diniz é grotescamente figurado como uma máquina sexual, espalhando pelo reino filhos ilegítimos, a um dos quais intenta legar o reino (Sanches) e não ao presumido legítimo Afonso, apoiado por nobres que sentiam pela primeira vez escapar o seu poder feudal a favor de um Estado centralizado iniciado por D. Dinis. Afonso revolta-se contra o pai, é apoiado pela mãe, que tenta apaziguar a luta entre ambos.
Entre os bastardos de D. Diniz, existe Maria Afonso, a preferida do rei, freira no convento de Odivelas, porém de costumes muito livres no que diz respeito a relações sexuais. É assassinada no início do romance e D. Diniz incumbe Lopo Aires Teles de descobrir o assassínio. Lopo assume a figura do detetive atual no romance policial, a todos interrogando. Outra personagem apresentada grotescamente, Lopo é um cético, desumanizado pela morte do filho mais velho, que carrega literalmente aos ombros como se ele estivesse vivo e, posteriormente, pela morte do segundo filho. Porém, leal a D. Diniz, obedece, pagando mais tarde com a devastação da sua quinta, incendiada, e inicia o desvendamento das relações secretas entre os nobres, nas quais descobre que “há um segredo na corte. Um segredo de morte” (p. 211). Que segredo é assim tão poderoso? Deixemos o leitor saciar a curiosidade por si próprio.
Num romance de ódios, traições, de bestialidades, algumas camufladas por intenções divinas (todas as praticadas por Santa Isabel), de conspirações para se assassinar o rei, de guerras pela sucessão do trono, de miscelânea sexual (até o traseiro do cavalo Jeremias é violado), de troca de sexo por terrenos, destaca-se a aia de Isabel, Vataça, o elemento mediador entre todos: viúva do nobre Martim, Vataça está presente na câmara do rei, é a faz-tudo de Isabel, está também presente na câmara de Lopo e teve relações com o homem-bicho. Por ela, sabemos dos tormentos que Isabel sujeita o corpo, das suas obsessões com os pobres, os leprosos, os doentes, da sua mania de falar latim como língua de Deus. Uma belíssima personagem, muito bem construída esteticamente.
A Rainha e a Bastarda,
Quetzal, 356 pp. 17,70 euros.
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