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Raízes - Lídia Jorge


O Mundo Para Além da Língua

2017-10-27 00:00:00

 

 

O Mundo Para Além da Língua
Uma visão portuguesa

Lídia Jorge

King’s College, 20 de Outubro, 2017

Alguns dos presentes lembrar-se-ão de que, no início dos anos noventa do século passado, a questão da invasão de Timor-Leste pelos indonésios era um assunto que apaixonava a opinião pública. Aconteceu que, por altura do massacre no cemitério de Santa Cruz, quando a tensão estava ao rubro, apareceu um embaixador holandês, denegando a posição dos portugueses e a falar contra as pretensões dos timorenses. Certa noite, o embaixador surgiu mesmo na televisão estatal portuguesa com argumentos muito duros, e ao expô-los fazia-o de modo enfático, num tom severo, agressivo, utilizando vocábulos que pareciam estoirar no ar com estridência. A fala do embaixador era tão desagradável de gutural e áspera que eu concluí que o holandês era a língua mais feia do mundo. Mas no dia seguinte viajei para Paris para integrar um encontro de escritores que iria discutir o papel dos criadores em democracia. Quis o acaso que o primeiro interveniente fosse uma mulher, uma poeta holandesa. E ela começou por abrir o seu discurso com a seguinte frase – O holandês, a minha língua, é a mais bela do mundo. Para demonstrá-lo leu um poema, e de súbito, a melodia das palavras fez do seu idioma uma língua dúctil, serena e profunda, repleta de entoações melódicas. Julgo que o poema falava de liberdade.

Estes dois episódios, separados por escassas horas, tornaram-me modesta e cautelosa no juízo sobre as línguas. Na verdade, as línguas desempenham as várias funções que todos lhes reconhecemos, mas não há dúvida que o elemento afectivo preexiste à língua, ao mesmo tempo que é formatado por ela, e envolve todas as outras funções de modo indissociável. De tal modo assim é que a noção de pátria, aprisionada no seu nó de sentimentos profundos de pertença, se transforma num dos factores identitários mais importantes para o ser humano. Nesse domínio, Wilhelm von Humboldt discorreu de forma definitiva sobre o assunto na sua já distante conferência de 1820, demonstrando como as línguas são um dos factores que melhor permite estudar a diversidade humana e sua contenda. Como se ao ser humano pertencesse a voz, a voz como potencial da fala universal, e às diversas sociedades humanas pertencessem as línguas, regionais e particulares como elas. E assim, através dessa equação que levava ao extremo, julgava von Humboldt que, se se alcançasse o prodígio de se falar uma só língua, a paz na Terra seria definitiva.

Duzentos anos depois, essa ideia está afastada do nosso horizonte. Infelizmente, aprendemos que todas as guerras das estrelas, essa lúdica projecção do futuro, se acontecerem na realidade, serão feitas numa só língua. Sabemos também que, ainda mais arcaica do que a voz humana, através da qual todas as línguas se declinam, é a pulsão da violência que transforma o outro não no espelho de mim mesmo, mas no meu inimigo. Depois de von Humboldt surgiram incontáveis teorias sobre as línguas e a linguagem, e ocorreram duas guerras mundiais para nos tirarem as ilusões. Talvez, nos últimos tempos, porém, depois da queda do muro de Berlim, por um breve intervalo, alguns dos crentes na natureza humana tenham pensado que a paz iria ser possível. Subitamente surgiram várias perspectivas nesse sentido, imaginou-se até que a História como batalha humana poderia ter o seu fim à vista, e houve títulos bombásticos que nos prometiam esse futuro radioso. Durou pouco, como se sabe, essa ilusão. A ideia de que bastaria, dentro de pouco tempo, usar o cartão bancário em vez do passaporte para viajarmos à volta do mundo, essa bela utopia de que seríamos passageiros livres num mundo globalizado, caiu estrondosamente por terra nos últimos anos. Os sonhadores com a paz perpétua podem dar voltas em seus túmulos. Hoje, para fazermos uma curta viagem de avião, ironicamente, temos de deixar que as nossas bagagens sejam revistadas como potenciais materiais explosivos, e os nossos corpos são vigiados e radiografados na maior desconfiança colectiva da história humana. Os nacionalismos agressivos regressaram, sempre com a ideia de que a minha pátria é melhor do que a tua. Mais, antes que a vizinhança da tua pátria me prejudique, que se erga um muro entre a minha e a tua, para ver se eu me salvo, enquanto tu te afundas. Vivemos momentos de decepção. Porque não dizê-lo? A realidade é tão dura que não há mais lugar para nos dividirmos entre pessimistas e optimistas, apenas entre desistentes e resistentes.

Por isso, parte da teoria de von Humboldt volta a ser reclamada como realista, pelos que resistem, na medida em que defendeu que cada língua é em si uma energia própria, um organismo vivo, uma plataforma entre o pensamento e o mundo, espelhando-se nela a história de cada sociedade enquanto nação delimitada pelas suas fronteiras, e que a compreensão do mundo se faz a partir da justaposição das diversas visões do mundo que a cada sociedade assiste. Conhecermo-nos, pois, pátria a pátria, é uma medida modesta, mas razoável.

Só que também aí se verificou uma alteração fundamental. A noção de fronteiras nacionais continua a existir em concreto, como elementos convencionais indispensáveis, mas a elas se sobrepõem novas fronteiras não demarcadas nem previsíveis. De súbito, como dia a dia dolorosamente se confirma, as fronteiras deixaram de ser geográficas para se confinarem pura e simplesmente aos limites do nosso próprio corpo. Graças aos novos meios técnicos e à tecnologia, todos podemos andar à volta da Terra, todos podemos ser vizinhos de qualquer um outro, só que não estávamos preparados para semelhante vizinhança. As diferentes culturas e as diferentes religiões, misturadas explosivamente com súbitos amores por antigas e novas pátrias, fazem com que as fronteiras não sejam mais riscos sinuosos nos mapas, antes paredes porosas de qualquer compartimento em qualquer lugar da Terra. E nós, que gostaríamos de dizer que cada homem é uma pátria, somos obrigados a dizer que cada homem é uma fronteira, o que em concreto significa que cada indivíduo é, ao mesmo tempo, um escudo, um alvo e uma arma. Cada homem é um campo de batalha, um campo de Austerlitz em potência. Esta a novidade que os teóricos pacifistas das línguas não vislumbravam. O que significa que neste contexto global, vale a pena regressar calmamente às línguas e às pátrias, como se não tivéssemos aprendido nada, para reiniciarmos o conhecimento mútuo, na esperança de que esse conhecimento nos permita colocarmo-nos de coração aberto uns diante dos outros, e assim recomeçarmos uma nova aproximação, uma nova vizinhança, um novo entendimento.

2.

Nessa perspectiva, gostaria de falar do que melhor conheço, dos portugueses, da sua pátria e da sua língua. Sobretudo da sua Literatura, a forma mais elaborada que as línguas alcançam, tendo em conta, por outro lado, que as Literaturas, que vivem das fábulas e dos imaginários transversais, tendem para a universalidade e sempre nos unem. Partilhar o modo como nos vemos, como nos definimos, o que lamentamos e o que desejamos, através da Literatura, é uma forma de nos reconhecermos enquanto sujeitos de um espaço que, saindo sempre de uma certa terra, fica acima da Terra, um espaço familiar, já que o imaginário e a transfiguração são um território estendido a todos, ainda que complexos e ainda que não resumíveis.

Aliás, por oposição, falar de certo modo das Línguas até é fácil e resumível. É fácil para os portugueses, por exemplo, falarem do Português com certo ufanismo e entrarem com facilidade na corrida para os sprints em busca dos primeiros lugares do podium. É fácil dizer, por exemplo, que hoje em dia ela abarca perto de duzentos milhões de falantes, mencioná-la como a terceira língua europeia mais falada no mundo, e a sexta, depois do mandarim, do inglês, do espanhol, do hindi e do árabe, no ranking das grandes línguas. Que se distribui por quatro continentes do Globo terrestre, que os seus falantes correspondem a zonas em expansão demográfica, que contém 600.000 vocábulos contra o milhão de vocábulos ingleses, mas que se lhe equivale pela riqueza das perífrases e associações metafóricas, tal como sucede com as outras línguas românicas. Que tem vocábulos míticos intraduzíveis em qualquer idioma como saudade, colo, ou bicho, palavras que são corpos semânticos simbólicos da sua singularidade. Pode-se dizer também que, com o advento das novas tecnologias, os países que formam a comunidade que tem por sigla CPLP, à semelhança das línguas francesa, inglesa ou espanhola, está a criar instrumentos de utilização modernos e eficazes que lhe permite uma projecção ascendente. Pode-se dizer que, à imagem do que sucede com outras línguas, também agora oferecemos livros, bonés e lapiseiras em troca da aceitação da língua. E, também, em sentido contrário, já fazemos sociedade com países que nada têm a ver com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, como é o caso da integração inexplicável da Guiné Equatorial a troco de eventuais petro-dólares. E no meio de tudo isso, muitos distorcem o sentido da frase de Fernando Pessoa, proclamando que a minha pátria é a língua portuguesa, para nos imaginarmos grandes, como antigamente, quando tínhamos colónias e nos chamávamos império. Outros invocam a impressão de Miguel de Cervantes de que o português era um espanhol sem ossos, para sublinharem o seu carácter dúctil e melódico, associado a um temperamento manso.

Isto é, descrita deste modo, a língua Portuguesa encontra-se no meio das estatísticas ganhadoras. Mas nada será compreendido sobre a história desta língua, se não se perceber que tudo começou com uma população de um milhão de falantes, ocupando o escasso espaço de uns noventa e três mil quilómetros quadrados rente ao mar, acossados pela vizinha Espanha, e que, diga-se o que se disser, ao longo dos séculos XIV e XV, foi o primeiro a circum-navegar a África e ir até à Índia, e depois à China e ao Japão e o que primeiro circum-navegou a Terra, e participou como pioneiro na primeira globalização, tendo deixado o rasto da Língua Portuguesa, até hoje, pelos vários continentes. Com as mãos sujas, mas também com as mãos limpas, próprias de um tempo, no alvorecer da descoberta da configuração redonda da Terra.

Como também pouco se entenderá se não se souber que o imenso império português se fragilizou, desde a primeira hora, por péssimas administrações, se não se disser que a religião católica veiculada pelos portugueses era muito mais ritualística do que instrutiva, se não se compreender que a difusão da leitura e da instrução letrada foi escassa e por vezes nula junto dos povos considerados ultramarinos, entre os europeus. E assim, invocando a Literatura, o lugar onde a língua floresce, não admira que os portugueses ainda hoje encontrem no símile do mar, esse local onde se definiram, ora como ganhadores ora como vencidos, a projecção da sua intimidade e do seu destino. O símbolo da sua configuração ontológica como nação e como indivíduos. Vocábulos, sentenças, narrativas, contos populares e produção literária de toda a natureza têm o mar como espaço e referência. A música desde a popular à erudita refere-se a ele como tema. É impressionante a presença do tema do mar nas letras da música portuguesa. Uma cantora como Amália Rodrigues encontra nos versos que a seguir transcrevo uma síntese íntima dessa configuração. É dela a seguinte letra de fado:

Tinha um coração, perdi-o
Mas sei que o vou encontrar
Preso no lodo do rio
Ou ancorado no mar”.

De igual modo, a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu de modo mais radical uma espécie de epitáfio para si mesma, e o elemento determinante é o mar.

Quando eu morrer
voltarei para buscar
os instantes que não vivi
junto do mar” .

Ou simplesmente a síntese que Vergílio Ferreira introduziu no discurso de abertura da Europália 91 em Bruxelas, que depois serviu de tarjeta no frontão do pavilhão português no Salon du Livre de Paris, em 2000, e hoje é uma divisa usada entre as escolas, as universidades e a população comum - “Da minha língua vê-se o mar”.

Trata-se, pois, do topós mais frequente, e mais glosado da Literatura portuguesa. Uma língua de mar nas várias vertentes, na alegria de o ter por perto, no deslumbramento da paisagem, no lugar de prosperidade e fartura, na simbologia da totalidade, na simbologia do lugar da evasão e da viagem, no desafio das ondas e das tempestades e no heroísmo de as vencer, mas também no que significou de sacrifício e sentimento de derrota que se glosou no passado, que atravessa o século XX e que vem até aos nossos dias. Como se a consciência da felicidade nunca fosse suficiente para afastar a dificuldade e a batalha que a ele se associa.

Não é preciso regressar ao século XVI, com Camões, nem ao século XVII com Fernão Mendes Pinto ou aos relatores da História Trágico-marítima. Por exemplo, o poeta Camilo Pessanha, escritor do início do século XX, invocando a sensualidade do mar, no poema Vénus, entre o deslumbre da beleza, escreveu cinco dos versos mais compassivos sobre o confronto entre o mar e o homem, na lembrança do naufrágio como condição da própria natureza. O homem, desfeito e confundido com a natureza. O poema termina da seguinte forma, intraduzível para inglês, creio eu:

Tantos naufrágios, perdições, destroços!
-Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira
Dentinhos que o vaivém desengastara
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…”

Mas o poema que melhor sintetiza o deslumbramento pelo mar cruzado com o desastre, a fúria e a violência, e a tenacidade humana, o gozo de vencer e rasgar fronteiras de todas as espécies, será porventura a Ode Marítima de Fernando Pessoa, longo poema de novecentos e oito versos que, em dado momento elege, na figura do pirata dos mares, o herói trágico que simboliza a Humanidade de que o ser do poeta se faz parceiro ébrio. É o poema mais belo da Literatura portuguesa do século XX, talvez de todos os séculos. Permitam-me que leia a seguinte passagem:

No mar, no mar, no mar, no mar,
EH! Pôr no mar ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!

Sim, sim, sim… Cruxificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses ao som das vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar.

(….)

Façam enxárcias das minha veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, preguem-me às quilhas.
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra aos velhos navios!
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arracados!”

Este é mesmo, porventura, o poema mais belo da Língua Portuguesa, pelo furor lírico, pela ousadia semântica, pela entrega aos extremos. E também pela corporização do europeu que atravessou os mares na figura do grande pirata, aquele que reúne o ímpeto da violência com o ímpeto da transposição do desconhecido, das barreias físicas e das éticas.

Mas naturalmente que este é um poema cimeiro, excepcionalmente lírico, mas outros campos existem bem mais prosaicos, em que o mar e a distância surgem como sujeitos. Resto de um império colonial que perdurou para além dos outros impérios europeus, o primeiro a desenhar-se, e o último a fechar a porta, pelo prolongamento de várias frentes de uma Guerra Colonial extemporânea, a língua portuguesa, hoje falada por cerca de cinco por cento dos falantes do Globo, transformou-se numa língua de terras e lugares trocados. A memória das idas e das vindas constantes, ora por comércio ora por guerras e escaramuças, deixou marcas que vão muito para além da toponímia, mas que através e de mistura com ela se manifestam.

António Lobo Antunes numa das Cartas de Guerra que enviou à mulher, a partir de Angola, durante a Guerra Colonial, escrevia em 1971, sobre a falta que lhe faziam os lugares portugueses, de mistura com a estranheza sobre os hábitos dos nativos:

Estar aqui traz-me constantemente à memória, não sei porquê, paisagens como aquela estrada entre Santarém e Alpiarça, com os plátanos fechando-se por cima das cabeças, o jardim público de Montemor, a Golegã deserta a qualquer hora e de portas fechadas, o Tejo assoreado reduzido a imensos bancos de areia. Eu gosto desesperadamente do meu país e da minha amada língua portuguesa, a mais bela de todas. Quero ser enterrado aí, onde quer que morra, sob o “vento que muxe coma unha vaca”. À hora do almoço eles trazem fuba e peixe seco e amarelo, e comem sem mastigar essa farinha sem gosto, e serram os dentes de maneira a transformá-los em triângulos agudos de rato. E eu gosto tudo de ti e amo-te.

António”.

Lobo Antunes encontrava-se, então, acantonado em Gago Coutinho, província de Moxico, em plena Guerra Colonial. Mas, passados quarenta anos, depois da descolonização, são os regressados de África que transportam consigo os topónimos longínquos e os escrevem em letra de forma nos estabelecimentos. É quem vive desterrado em Portugal que homenageia o lugar deixado lá longe, e os lugares, neste caso, a província de Moxico viaja agora em sentido inverso. O jovem escritor Bruno Vieira Amaral no seu livro As Primeiras Coisas, tentando explicar por que razão o nome da drogaria Macondo, do Bairro Amélia, lugar inventado, a Sul de Lisboa, não se refere ao lugar literário de Gabriel García Marquez, colocando uma nota na respectiva página do romance:

A origem (de Macondo) não é literária. Denuncia apenas a origem dos proprietários. O senhor Neves e a mulher tinham uma roça em África na província do Moxico, mais precisamente nos arredores da cidade de Macondo. No Bairro Amélia havia também o bazar Malange, a frutaria Namibe e a papelaria Huambo, do Senhor Aires. Cafés, havia o Nortenho, O Minhoto e o Alentejano, sendo que nada, excepto o nome, associava os cafés à terra natal dos seus proprietários.”

Claro que a prática da viagem dos topónimos é de todos os tempos e de todos os lugares, sendo que o relevo que cada cultura atribuiu a essa representação atinge graus diferentes. Em Portugal as distâncias em relação aos pontos do Globo contam histórias passionais em relação à pátria de uma forma impressiva, como se Portugal fosse um personagem deixado para trás, maltratado, ou simplesmente adorado à distância. Quando António Lobo Antunes, então apenas um jovem médico que ainda não era publicamente um escritor, nem pessoa conhecida, declarava que amava a sua terra a ponto de só querer ser enterrado nela, fazia-o como qualquer soldado, para que o seu desejo ficasse encerrado nas dobras de papel de uma carta de família. Essa é a sensação que se tem, de que existe uma história passional dos portugueses com o seu país, onde quer que estejam, e que muitas vezes a forma de o apoucarem, denegrindo-o, como acontece amiúde, ainda é um modo de lhes declararem o seu amor.

Assim se compreende que um outro escritor, Pedro Rosa Mendes, no romance A Baía dos Tigres, tenha tentado retomar a viagem entre a Costa Ocidental de África e a Costa Oriental, acontecida mais de cem anos antes. Refiro-me à viagem de exploradores anterior à viagem de Livingstone, viagem dos portugueses que procuravam legitimar o direito à faixa da África Central, toda a zona que medeia entre Angola e Moçambique, plano que os portugueses perderem estrondosamente, perante os ingleses, os alemães e os franceses, nos longínquos anos oitenta do século XIX. Voltando a A Baía dos Tigres, romance de viagens e simultaneamente autobiográfico, em 1997, convém dizer que o narrador parte da Baía com esse nome em Angola, e vai-se embrenhando pelo interland adentro, encontrado uma África cujas fronteiras, muitas delas traçadas a régua e esquadro no final do século XIX, já perderam os contornos, transformando-se numa amálgama de referências desencontradas, gente perdida, perante as quais os oficiais da ONU são impotentes ou inoperantes. Ao longo dessa viagem, o narrador, que leva consigo uma ecografia da filha que vai nascer, vê esmaecer a imagem, à medida que as identidades também colapsam e o território africano se transforma num espaço de desastre. Claro que, sobre o tema, não é o único a fazê-lo.

Incontáveis livros nas últimas décadas têm sido escritos sobre a mesma realidade. Mas que eu tenha tido conhecimento, nunca nenhum alcançou a projecção humana, sentida, de A Baía dos Tigres, pela paixão pelos homens, pelos seus relatos directos, sentimento de comiseração e simpatia, como se um século volvido, Pedro Rosa Mendes tivesse vindo dizer que o mapa-cor-de-rosa, esse mapa que os portugueses procuraram criar há cem anos, e foi rasgado, fosse agora inaugurado pelo poder do testemunho vivido. Pelo poder da língua e da Literatura, agora quando o mundo se globalizou numa nova colonização para a qual ainda não encontrámos os adjectivos próprios. Sobre os efeitos da guerra civil em Angola pode-se ler em A Baía dos Tigres:

Queres saber sobre a Guerra do Bié?

Matámo-nos a não sobrar. Sem quartel – não saímos de casa, nem para o enterro. Uma guerra civil é isso. Demência em redor da mesa de jantar. A nossa exorbitou-nos. Exterminámos na linhagem, do mais novo ao mais defunto, dos que ainda estavam por conceber aos que já não tinham missa por alma. Morremos no lar e no cemitério, na cama na campa no campo. No Cuíto também se mataram os mortos, a guerra chegou até eles, não os desperdiçou, mereceu-os, morreram duas vezes. Os vivos muitas mais. No Bié somos sobreviventes ou ressuscitantes e tu não vais conseguir dizer aquilo que eu sou. Ninguém tem essa coragem. Nem nós. Teríamos de vazar os olhos de modo a que nada ficasse em órbita, para então enfrentar a verdade(…) Nos quintais ainda levantámos cruzes com a madeira que ficou. Nós sabemos os sítios – como esquecê-los? – mas as crianças nasceram depois”.

É possível que seja uma presunção, mas creio que só um português poderia ter escrito um livro tão compassivo como este, com a História dos portugueses de mistura com gente de todo o mundo. As guerras, as bravatas, as monstruosidades e as cenas de compaixão são relatadas como se todos fossem vizinhos próximos e a todos é dada a vez do seu discurso directo.

Aliás, um traço que define os portugueses por oposição a outras culturas é uma forma especial de partilha. Há uma imagem síntese, extremamente eloquente, que envolve britânicos e portugueses em oposição. Surgiu no livro do General Spínola, Portugal e o Futuro, publicado em 1973, o livro que antecipou a Revolução dos Cravos de 1974 e o início da descolonização que viria a suceder em consequência. A dada altura, escreve o General a propósito da colonização portuguesa e da colonização inglesa. Cito de memória – “Enquanto os britânicos disseram aos povos nativos, eleva-te mas não te aproximes, os portugueses disseram, aproxima-te mas não te eleves”. Se nos colocarmos só do lado positivo da afirmação, a síntese coloca em relevo o carácter civilizador dos ingleses por oposição à capacidade de confraternização dos portugueses.

Aliás, há muito que tenho para mim que os portugueses, pelos bons e pelos maus motivos, são aqueles que estão sempre dispostos a partilhar os três rectângulos primordiais da vida – o rectângulo da mesa, porque comem com todos, o rectângulo da cama, porque se deitam com todos, e o rectângulo do túmulo, porque não se importam de ser enterrados ao lado de qualquer um outro, ainda que sempre sonhem ser sepultados na terra natal. Esse carácter de partilha dos bens de primeira instância (não das letras e da cultura) está plasmado nos grandes textos clássicos portugueses, faz parte da sua história marítima, a trágica e a heróica, e chega aos séculos XX e XXI enunciando os mesmos temas, numa linha sucessória impressionante. Ainda há dois anos, Ana Margarida de Carvalho, uma escritora bastante jovem, publicou um livro em que o tema da fraternidade se bifurca em duas vertentes distintas – uma história luso-brasileira de partilha, e uma metáfora do mundo actual reflectido na figura dos que rondam de terra em terra e se acotovelam por um espaço legítimo, como se a Terra habitável se tivesse reduzido a estreitas faixas do Globo.

Em “Não se pode morar nos olhos de um gato”, Ana Margarida imagina um tumbeiro, um navio próprio para transporte de escravos, já depois da abolição da escravatura, barco que parte do Brasil a caminho de Portugal e é assaltado por uma tempestade. Tendo dado à costa uns quantos náufragos, são obrigados a partilhar uma estreita faixa de areia que se alarga ou diminui, até desaparecer por completo, ao sabor das marés. É nesse estreito espaço forçadamente partilhado que os exemplares de uma sociedade do século XIX, dividida em classes, desde o escravo ao padre, às senhoras, mãe e filha aristocratas, são obrigados a coabitar, exacerbando as diferenças, mas forçando-se a ceder uns perante os outros, pela força da sobrevivência. Em dado passo, aqueles que eram estranhos acabam mesmo por se irmanar e confundir durante um banho com óleo de baleia, como se fossem crianças, quando já não há outro modo de se limparem e curarem das feridas. A dado passo pode ler-se:

Em seguida, Teresa mandou vir Julien, Marcolino e o capataz, que pescavam no mar, um por um. Esfregou-os despidos, dos pés à cabeça, e nenhum erotismo encontraram no acto, pois Teresa lavava-os com método e concentração, a raspar-lhes a pele das costas com um naco de concha de ostra (...) E eles, cada um por sua vez, submissos e silenciosos, pacientes que se submetem à cura, gratos por serem cuidados. (…) E Núnzio com o desagradável pressentimento de que Teresa não queria desperdiçar o precioso óleo com ele.

Há homens que nasceram para serem ninguém.
À noite, embrulhados uns nos outros, todos se sentiram irmanados,
por terem,
novamente,
o mesmo cheiro”.

Uma poderosa metáfora em que a praia do século XIX se transfigura na Terra do século XXI, agora que se percebe que a reinvenção da escravatura parece ser infinita, mas também quando se percebe que ninguém se salva sozinho. Verdade seja dita que, hoje em dia, estes são temas partilhados por várias Literaturas, diria que este é o tema universal dos nossos tempos. A esta hora mesmo, deverão estar várias dezenas de escritores, diante dos computadores a escreverem sobre este nosso dilema humano.

Aliás, nada do que aqui se disse sobre a Literatura portuguesa, o mar, a distância e a viagem, o naufrágio, é exclusivo da nossa casa. O que é singular, isso sim, é a persistência, o relevo e a continuidade que este tipo de temas alcança nos textos que ao longo dos séculos foram sendo produzidos em língua portuguesa. Como se o tema da relação dos portugueses com os outros nos definisse perante nós mesmos, e nos desse um sentido de existência pessoal e colectiva. Em termos colectivos, regista-se uma espécie de tratamento esbatido das diferenças, por oposição às literaturas de identidade marcadas pelo confronto. Mesmo as zonas de contacto entre os portugueses e os povos dos outros espaços da Língua Portuguesa, os espaços da antiga colonização, não se estabelecem com agressividade, existe antes uma certa compassividade o que está patente nas diferentes literaturas, a brasileira, a moçambicana, a angola, ou a timorense. Literaturas recentes afirmadas nas últimas décadas mostram, da parte dos escritores de língua portuguesa dos países africanos e asiáticos, uma espécie de regresso ao acto colonial, passando a faca pela incriminação antiga, e ao fazê-lo, trilham o caminho de uma revisão que lhes importa a eles tanto quanto a nós, usufrutuários e vítimas desse modo passado de fazer mundo. Mia Couto, Agualusa, Nélida Piñon ou Luís Cardoso não transportam para a Literatura o acinte e o ressentimento que largas faixas dessas sociedades ainda sentem ao vivo. Não são porta-bandeiras desses sentimentos. Pelo contrário. O mesmo se passa com as outras artes, nomeadamente a música e a canção. O refrão da canção Fado Tropical de Chico Buarque de Holanda, gravada em 1971, continua a ser uma divisa, próximos que estão os dois países, Brasil e Portugal, umas vezes pelos bons, outras vezes pelos maus motivos. Soa ainda como um hino familiar, na voz do Chico, esse estribilho brasileiro:

Esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.

Já em 1975, depois da Revolução, quando o Brasil ainda vivia em ditadura, Chico Buarque escreveu e cantou Tanto Mar, tema impedido pela censura brasileira. Dizia então palavras que continuam actuais nos seguintes versos -

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.

Aliás, essa relação amistosa de parceria, a nível da música continua intacta. O cantor, filho de cabo-verdianos, Boss A. C., que a si mesmo se define como tuga, isto é, abreviatura de portuga, deformação familiar de português, numa composição rap , com o título de Faz favor de entrar, ou Tuga Night, mostra a sua preferência pela língua portuguesa, e pelos portugueses em detrimento dos outros idiomas e outras nacionalidades, mesmo que elas lhe dessem outras hipóteses de sucesso, com as seguintes palavras:

“…Falso aqui não é ninguém, só entra quem vem por bem.
A festa é nossa, não é preciso cartão da casa
Se vens com preconceitos, yo, baza, baza
Poucos entendem o plano, rap veterano
Ouves umas dicas em inglês, mas não sou americano,
Chamo-me tuga-verdiano
Mano, ist’ é hiphop lusitano
Esquece o bling-bling que ele aqui não brilha
Deportamos mafiosos de volta pá Sicília…
Aquecemos o ambiente cause we hot like that
Don’t hate because I’m tuga like that…”

A Literatura Portuguesa ensina, pois, que este povo europeu vive da memória de um passado de esplendor já remoto, mas, sobretudo, de uma experiência prolongada de derrota, temperada pela noção de um tipo de partilha humana próxima de um ideal de fraternidade que nos aproxima dos ideais modernos de convivência oriundos do Tempo das Luzes. No momento em que esses ideais de convivência e partilha parecem de novo abalados, é possível que os portugueses possam dizer algumas palavras ao mundo. Ficaria muito mal se o povo que fala, escreve e criou a Língua Portuguesa defendesse, na hora que passa, as posições que defendem o primado das finanças sobre a gestão da justiça, se defendessem, no concerto das nações, as posições dos que através do negócio das armas criam guerras próximas e longínquas, atiçando povos contra povos, continentes contra continentes. Ficar-nos-ia muito mal, a nós, que conhecemos a humilhação que infligimos aos outros nos territórios onde fomos colonizadores, e a humilhação própria infligida por aqueles que se têm aproveitado, ao longo dos séculos, da nossa debilidade interna, para nos diminuir. Ficar-nos-ia muito mal. Digo-o, com sinceridade porque o penso. Mas penso, sobretudo, porque o vivi.

3.

Pessoalmente, o meu primeiro contacto com a distância e com as paragens longínquas data da primeira infância, quando recebíamos as cartas do meu pai e do meu avô materno, ambos emigrantes em África. Viviam e trabalhavam em Moçambique, e enviavam fotografias de grandes ajuntamentos em torno das mesas de um e de outro, pessoas quase despidas, com olhos assustados diante da máquina, por vezes fotografias de caçadas, os nativos acocorados junto dos animais abatidos, outras vezes dançando, e o meu pai e o meu avô, tendo-se por bons patrões, contavam que os africanos, quando os encontravam nas ruas mudavam de passeio por respeito. Havia da parte do meu pai e do meu avô um paternalismo que na altura eu não poderia saber interpretar, e imaginava que lá, junto daquelas pessoas que mal entendiam o português, porque falavam a língua sena e a língua ronga, existia um paraíso. Os meus familiares eram pessoas daquele tempo, daquela condição, daquele mundo. Impossível descortinar na harmonia que mantinham com a população local a mais pequena brecha. Foi preciso desencadear-se a Guerra Colonial, e ter acesso à raiva em directo, para compreender quanta humilhação havia sido recalcada ao longo dos tempos. Viajei para lá.

Dessa altura, lembro-me de uma cena marcante. Eu vivia numa messe de oficiais. Ao cair da noite, os oficiais da Força Aérea juntavam-se no foyer com as mulheres para uma breve refeição. Mas naquela noite ninguém tinha sossego porque lá fora havia uma praga de gafanhotos tão densa que criava auréolas verdes em torno das luzes dos candeeiros da rua. Além disso, os populares tinham acendido fogueiras ao longo da marginal e nelas grelhavam gafanhotos que comiam, dançando. Era uma imagem maravilhosa, plasticamente deslumbrante, a noite escura estava enfeitada de auréolas verdes, e, sobretudo, as pessoas pareciam felizes. Ouvia-se o som dos cantos. Mas ali dentro, entre os oficiais portugueses, não era isso que se comentava. Comentava-se que os selvagens comiam gafanhotos. Comentava-se com repulsa. E no entanto, o que se comia no foyer, era alguma coisa que tinha o mesmo talho e a mesma configuração dos gafanhotos, só que de uma outra cor. Comíamos camarões. Nessa noite, eu percebi por que razão iríamos perder a guerra, teríamos de a perder. Percebi que os mortos que estávamos a sofrer nos matos eram para nada. Era para esquecer. Éramos irmãos uns dos outros, tão próximos, tão idênticos, e não nos entendíamos. Nos nossos juízos de valor, tínhamos séculos a separar-nos. Passados muitos anos, a partir dessa noite dos gafanhotos, eu escrevi “A Costa dos Murmúrios”.

Depois da independência, ainda voltei aos mesmos locais, quis saber o que se passava com o hotel, com as escolas, o liceu, o porto, o hospital, as casas. Fui e encontrei tudo despedaçado. No porto enferrujavam barcos, nas escolas, não havia uma cadeira, uma mesa, um quadro preto. As moradias tinham perdido as telhas, as janelas os vidros, as portas tinham desaparecido. As estradas e as ruas estavam esburacadas. Era a negação que tinha acontecido. Era a História a recomeçar, nós a aprenderemos com ela que o ressentimento tem mais poder que a pólvora, que a História cria movimentos que são muito mais longos do que as vidas humanas individuais. Uma vida só, por cem anos que tenha, não é suficiente para galgar por cima da História. Ela tem um passo lento, arrastado precisa de movimentos de avanço e recuo. As línguas formam-se nesse lastro lento, cego para nós, indomável, para nós, as línguas fazem parte dessa grande onda de memórias no seio da qual nascemos e morremos sem nos darmos conta dos movimentos da sua ondulação. Pena que as línguas, invólucros tão fortes das pátrias, sempre desavindas, sejam objectos de guerra. Consola saber que as Literaturas, por mais locais que sejam, sempre são universais, e que o seu projecto sempre seja de paz.

Lídia Jorge

 

Nota: presentado no King's College, no âmbito do Programa Languageacts Worldmaking, no dia 20 de Outubro de 2017. Traduzido por Neil Robert Beck.

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