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Raízes - Richard Zimler


Uma perspectiva pessoal sobre a Lusofonia

2023-07-28 09:29:34

Uma perspectiva pessoal sobre a Lusofonia
Richard Zimler

Quando a Isabelle me convidou para falar esta tarde, hesitei durante algumas horas antes de aceitar. Porque não sou linguista, nem filólogo ou crítico literário. Pior ainda, nunca estudei português. Aprendi sozinho, num pânico desesperado no início – no princípio dos anos 90 – porque precisava de dar as minhas aulas de jornalismo em português. E não sabia mais de 50 palavras. Porquê em português? Embora o diretor da Escola Superior de Jornalismo me tenha dito que podia lecionar em inglês, rapidamente me apercebi de que o nível de inglês dos alunos era muito baixo. A solução? Memorizei listas de substantivos e adjetivos e conjugações verbais, quase constantemente, durante pelo menos 2 anos, pois estava determinado a dar aulas excelentes. E também porque não queria viver como estrangeiro em Portugal, comunicando apenas com as pessoas que falavam inglês ou francês. Queria contribuir para as vidas dos meus alunos através das minhas aulas e, um pouco mais tarde, contribuir para o mundo literário em Portugal através dos meus romances. E mais tarde ainda, programar sessões em escolas e bibliotecas e livrarias. Considero isso o meu dever cívico, uma parte do contrato que fiz com Portugal quando o governo me concedeu a cidadania em 2002.
Dadas as particularidades do modo como aprendi português, decidi que a minha única opção esta tarde era falar-vos brevemente sobre a minha relação pessoal com a língua e a lusofonia.
Nas escolas de Nova Iorque que frequentei, nos anos 60 e 70, não aprendemos quase nada sobre Portugal. Passámos alguns dias a estudar as viagens de Vasco da Gama, Magalhães e outros descobridores. Ponto final. Então, se alguém me tivesse dito nessa altura que um dia eu iria viver para Portugal e que passados mais de 30 anos aqui teria uma dúzia de romances publicados em português, eu teria dito que era louco – e que a sua bola de cristal precisava de ser consertada.
Mas na verdade aqui estou. O que mostra que a vida nem sempre pode ser prevista. E que muitas vezes podemos ir além dos nossos sonhos. Porque nunca pensei que seria capaz de viver e trabalhar fora da América. Uma confissão: A grande maioria dos americanos tem um problema geográfico, digamos assim – acha que o mundo começa no Maine e na Flórida e termina na Califórnia. Então, em criança, nunca imaginei que seria capaz de construir uma vida realizada fora das fronteiras dos EUA. Ou que seria capaz de pensar, falar e escrever numa segunda língua. Então, agora, sempre que digo uma frase em português, estou a ultrapassar os meus sonhos! E enquanto estou a falar convosco, neste exato momento, uma pequena parte de mim está a murmurar ao meu ouvido: “Isto é incrível. Estás a falar português e a entender tudo! E apesar do teu sotaque de Nova York, parece que o público também percebe o que estás a dizer!”
Adoro as complexidades da língua portuguesa – por exemplo, de tempos que ou não existem em inglês ou que foram quase eliminados, como o futuro, o presente e o passado do conjuntivo. Consegui em grande parte ultrapassar este obstáculo, mas ainda há momentos em que estou a falar numa escola ou no meu programa radiofónico e a meio de uma frase vejo o verbo a aproximar-se e não faço a mais pequena ideia se devo usar o presente do indicativo ou o presente do conjuntivo. Entro em pânico durante um instante e depois escolho o que me parece fazer mais sentido, esperando ter feito a escolha certa.
Fiz as pazes com essa minha dificuldade, em parte porque percebo agora – já com 66 anos – que todo o ser vivo, inclusive a língua portuguesa, tem os seus mistérios e segredos. Penso que isso faz parte do seu encanto e charme.
O que digo sempre aos meus amigos que têm vergonha de cometer erros numa segunda, terceira ou quarta língua é que todo e qualquer erro é um sinal da sua generosidade e coragem – um sinal de que está disposto a abrir uma porta para uma terra desconhecida e entrar e fazer o seu melhor para avançar até ao horizonte que, aliás, nunca alcançará.
Português não é apenas o idioma da minha vida quotidiana mas também já faz parte da minha carreira de escritor, pois escrevo os meus livros infantis nessa língua. Isso tem sido um novo desafio maravilhoso, porque contar histórias em português aprofunda a minha apreciação das suas nuances e possibilidades e confere-me um novo nível de fluência. Adoro as opções que me oferece para criar jogos de palavras e rimas e humor. Dá-me prazer utilizar os sons e ritmos do português para criar narrativas cativantes.
Uma das grandes vantagens de fazer parte do mundo lusófono seja a possibilidade de fazer uma viagem para qualquer um dos PALOP quando quiser – quando leio, por exemplo, um poema de um autor moçambicano:

Tambor está velho de gritar
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.
Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.
Nem nada!
Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.
Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.
Oh velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

E acho-me no Brasil sempre que oiço a música do idioma desse país:

É o pau, é a pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento vetando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

A Lusofonia é também uma máquina do tempo. Por exemplo, sempre que quero, posso viajar até ao século dezasseis e visitar um amigo que só conheço pelos seus poemas.

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
No mundo túmulos tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado.

E a Lusofonia dá-nos ainda uma forma de atravessar o véu que separa os vivos dos mortos e visitar velhos amigos que já não estão connosco. Por exemplo, aqui está o meu poema favorito de um amigo que lançou o meu primeiro romance em Lisboa em 1996, no Chapitô.

Chagall
Como se escrevesse um poema pinto a mulher
que irrompe da plumagem azulínea do galo
por cima das pontes anoiteceu onde flutuam
o bode e os noivos lancei por terra barreiras
entre elementos e leis físicas
para que o meu país se tornasse mais real
mais próximo de mim quando no exílio pouso
os lábios nas cores de avelã ou das nozes e
fico com o sabor delas na boca

recordo assim a casa paterna em vitebsk os nevões
de são petersburgo aquela criança no mercado
apanhando moedas atiradas ao tapete e a cabra triste
em equilíbrio - bailando - em cima do gargalo da garrafa
os músicos de acordeão e violino sob o clarão da lua
estes noivos que toda a minha vida esvoaçaram felizes
de pintura em pintura pelos nocturnos céus do país.


Para terminar, uma parte importante da Lusofonia para mim é a possibilidade de me fazer viajar instantaneamente de volta a Portugal onde quer que esteja, no momento em que ouço a língua falada ou, ainda mais poderosamente, cantada. Depois, regresso a casa e encontro-me a tirar ervas daninhas no nosso jardim no Minho ou a abraçar um sobreiro no Alentejo ou a contemplar a neblina da fronteira espanhola do ponto mais alto de Castelo Rodrigo ou a descer uma rua de Monsaraz ou de Tavira ou de Caminha e sentir os aromas do azeite ou de bacalhau ou de pão a cozer. Ou a olhar para um mar bravo e perigoso…

Barco Negro

De manhã, que medo que me achasses feia
Acordei tremendo deitada na areia
Mas logo os teus olhos disseram que não
E o sol penetrou no meu coração
Mas logo os teus olhos disseram que não
E o sol penetrou no meu coração
Vi depois numa rocha uma cruz
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia que não voltas
São loucas, são loucas
Eu sei meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz
Que estás sempre comigo
No vento que lança areia nos vidros
Na água que canta no fogo mortiço
No calor do leito dos bancos vazios
Dentro do meu peito estás sempre comigo
No calor do leito dos bancos vazios
Dentro do meu peito estás sempre comigo
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz
Que estás sempre comigo
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz
Que estás sempre... Comigo.

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