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Excertos de «A Valsa dos Pecados»


Riscado o meu velho eu, a vida tratou de redesenhar um novo e com novos olhos. Foi uma espécie de renascimento físico e psicológico – voltar à vida é como renascer – ainda que as velhas memórias tenham permanecido. Nesse novo eu tudo se alterou: a percepção da vida, essa roleta, que nos faz girar quando menos esperamos; a forma de olhar para o dinheiro, esse carniceiro, que tudo come desalmada e insaciavelmente; o desejo de sucesso, esse feiticeiro, que pouco a pouco foi tomando conta do meu espírito.
Não é para me justificar que escrevo. Nem para relatar o que de importante foi acontecendo quando regressei à capital. Nem para impingir as minhas ideias. Nem por passatempo. Rememorar as minhas lembranças é, muito provavelmente, uma boa forma de olhar para dentro de mim e de tentar compreender e aceitar algumas das decisões que tomei e de que me arrependo. Fui aos baús procurar os meus velhos diários, os bilhetes, as notas, os documentos, papéis que de uma forma ou de outra me fazem recuar no tempo. Contei com a ajuda de alguns companheiros na reconstituição dos acontecimentos antes e depois da guerra.
Talvez se torne necessário começar por falar já do meu regresso à capital. Uma alegria para a minha mãe que cada vez mais se esquecia das coisas do dia-a-dia e até mesmo de factos e vivências passadas que, em condições normais, ninguém se esquece. Logo que cheguei, fui visitar a galeria onde largos meses antes tínhamos conhecido o pintor. As instalações tinham sido alugadas a outra pessoa, e no local vendiam-se então pássaros e peixes de aquário. Conheci o proprietário das instalações, através do arrendatário, mas o sujeito não sabia o que era feito do pintor. São artistas, meu jovem, nunca se sabe o que vão fazer no dia seguinte, disse. Foi um balde de água fria...

...

A verdade, se me é permitido utilizar esta palavra, é que pensei muitas vezes na rapariga das tranças antes de ir para a igreja. Por onde andaria? Posso garantir que desistiria do casamento naquele preciso instante se a visse atravessar a rua! Lembrar-me dela com nostalgia a poucas horas de me casar era uma autêntica parvoíce! Quanto mais fazia para reprimir a sua imagem, mais o livro de recordações e confidências se reabria e mais ela me invadia: olhares e sorrisos, remoques e trejeitos, até mesmo o seu cheiro! Como me lembrei das suas brincadeiras e da sua invejável disposição. Era como se a velha fogueira se tivesse reacendido dentro de mim. Era como se estivesse a ficar alienado, drogado pelas recordações. Era como se um colete me estivesse a impedir de sair. Era como se ela me estivesse a avisar «não cases, não cases, que te vais arrepender...»
Tocou o telefone. Atendi, era a minha irmã. O que é que se passa? Ainda estás aí? Está toda a gente à tua espera! frisou. Disse-lhe que estava quase a sair e desliguei, presumo que a deixei com o telefone colado à orelha. Nesse momento lembrei-me das vezes que deixei a rapariga das tranças à minha espera.
Cheguei tarde à cerimónia. O meu padrinho – o namorado da minha irmã, um sujeito simpático com ar de atleta –, veio ter comigo e bombardeou-me de perguntas. A noiva, dentro do carro, aguardava por detrás da igreja, longe dos olhares dos convidados. Deve ter sentido um grande alívio quando me viu aparecer! O pai dela estava furioso e a minha futura sogra completamente desconsolada. Senti o peso da curiosidade ou da censura de umas largas dúzias de pares de olhos quando me dirigi para o altar. Houve música clássica à entrada da noiva. Estava encantadora mas um pouco pálida. Pedi-lhe desculpa e ela sorriu como se tivesse recuperado a felicidade. A cerimónia foi precedida por uma missa. Recordo-me de ouvir o padre proferir solenemente que amasse a minha mulher como Cristo amara a Igreja, que amar a minha mulher era amar-me a mim mesmo, e que iríamos passar a ser, a partir daquele dia, uma só carne. Nunca me esqueci destas frases, particularmente da última!
Alguns minutos depois, ainda o padre não terminara a tão célebre e costumeira pergunta, já eu acenava com a cabeça, acabando por soltar um «sim» mais alto do que as circunstâncias o recomendavam, um «sim» que motivou muitos sorrisos entre os presentes. Lembro-me da estrondosa salva de palmas no momento em que nos beijámos. Cá fora esperavam-nos as meninas das flores com as pétalas e com uma chuva de bagos de arroz. Depois veio o copo-d’água que terminou com uma banda a tocar e com um baile muito animado.

...

É domingo. A rapariga das tranças quer que eu pinte uma tela sobre a vida. Primeiro a planície adocicada e o rio e a fonte, depois as aves, o voo e a vertigem, a língua e a saliva, os braços lançados, a alvorada. E novos aromas também. Não posso esquecer a quinta, uma grande e bela quinta com tudo em harmonia, não posso esquecer o buraco para pôr o fogo, e também as úlceras e cirroses e os tumores da próstata, e também a lepra que grassa por aí. E uma lua grande para que a terra passe a girar mais lentamente e os dias possam ser mais compridos e com mais fantasia. Uma lua brilhante e cheia de luz, uma lua que ilumine o leme e dê luz ao coração do mundo. Preciso de pintar a última tela... Com cores vivas e traços alegres. A rapariga das tranças alertou-me para ter cuidado com as sombras.

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A Valsa dos Pecados Guerra Colonial Relações adúlteras
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