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Excerto de «Caídos da Mesma Árvore»


Telefonou ao sócio, enquanto se dirigia para o carro, dando-lhe conta da necessidade de mudança dos planos. Abriu com cuidado a porta da bagageira do Fiat Punto. Apesar do crepúsculo se estar aproximar, todas as cautelas eram poucas para se desfazer do cadáver que ali havia sido colocado por Honório e Valentino, antes mesmo de tratarem do ferimento de Zacarias. Tinham-no agarrado pelos ombros e pelos pés e enfiado na mala traseira do carro. O corpo encarquilhado, onde claramente se via um orifício a meio do peito, fazia lembrar o traçado de um quatro.


A situação não era fácil. Tudo por causa daqueles dois incompetentes, pensou Honório, enquanto estendia o lençol sobre Ricardo Pombo. A primeira ideia que lhe ocorreu foi enterrar o corpo numa pedreira que existia ali perto. Pedir a Valentino para se encarregar disso, ele que só tinha haxixe na cabeça, era o mesmo que lhe pedir para o atirar para uma vala comum. As consequências viriam imediatamente a seguir...

Lidava bem com a morte, ora falava dela com lisonja, ora com algum escárnio. Mas uma coisa era aceitá-la sem dramatismos, outra coisa era fazer-lhe companhia e vê-la, personificada em Ricardo Pombo, a meter-se consigo, obrigando-o a dar sumiço ao cadáver. «Estava escrito que o teu dia tinha chegado», desabafou Honório Farinha. «É a lei da vida, meu caro, houve alguém que disse que morrer é terminar de nascer... A vida rege-se pela morte, alguma vez pensaste nisso? Alguma vez pensaste no que seria o inferno desta vida sem a morte? Alguma vez pensaste que até as estrelas nascem, crescem e morrem? Ou pensavas que eras uma excepção? É ela que regula tudo, Ricardo Pombo! O que nenhum de nós dois imaginava era que seria eu a enterrar-te, ou melhor, a esconder-te!»

Honório conduzia o carro devagar, embora sentisse uma enorme ansiedade em ver-se livre do corpo. Por um segundo teve mesmo a sensação de estar a desempenhar a função de motorista de uma viatura funerária. «Ao contrário do que possas pensar, tive sempre uma simpatia especial por ti. É estranho ouvires isto, não é? A grande questão, Ricardo Pombo, é que a vida não é aquilo que parece! A única coisa que posso fazer por ti é enterrar-te... mesmo sem caixão! Sem direito a velório, a cerimónias, a música fúnebre ou a uma simples coroa de flores. Se eu acreditasse no Todo-poderoso ainda rezava uma oração por ti, mas nem isso posso fazer, meu caro.»

Cerca de dez minutos depois Honório Farinha chegava àquilo que em tempos fora uma pedreira. Tinha a certeza que ali arranjaria um canto para colocar o cadáver. Cobri-lo-ia de pedra, com cuidado, para não deixar qualquer vestígio. Saiu do carro e foi até ao local não sem antes certificar-se que não se via vivalma. Regressou ao carro. Abriu a porta da bagageira, mas no preciso momento em que ia agarrar em Ricardo Pombo ouviu um som estranho, uma espécie de gemido, um ruído que lhe pareceu ter sido emitido pelo próprio cadáver!

Fechou novamente a porta e deu um passo atrás. O primeiro pensamento que lhe ocorreu foi que o morto regressara para se vingar. A situação era caricata, não tinha medo dos vivos mas sentia-se enregelar com o corpo morto que trazia na bagageira. Devo estar cansado, cismou, não é possível... não há registo credível de que um cadáver possa gemer. «Merda para o vento, só pode ter sido o vento, o estupor do vento», disse Honório em voz alta. Mas o mais estranho é que se sentia invadir por um indefinível medo. Puxou de um cigarro, acendeu-o e ficou a fumar na penumbra daquele sítio deserto que pela primeira vez lhe pareceu macabro.

Voltou a abrir a porta do carro. Levantou o lençol e virou o corpo, que lhe pareceu mais rígido ainda, de forma a poder olhar de frente para o cadáver. A luz da porta da bagageira batia em cheio nas faces. Olhou minuciosamente: o rosto, da cor do iodo, parecia ter saído de um combate de boxe; os olhos semicerrados, pretos e profundos, pareciam estar a olhar para si. Honório assustou-se. Mas assustou-se mais ainda ao pôr a mão na garganta de Ricardo e perceber que o coração do homem ainda batia.

Estava desfeita a dúvida e a ideia estapafúrdica de que o homem voltara para se vingar. O que fazer? Teria de acabar com Ricardo, acabar de matá-lo. Na situação em que ele se encontrava, era mais do que um gesto de caridade. Puxou da Glock, encostou a boca da pistola à testa do morto-vivo e pensou que pela primeira vez iria acabar com alguém. Tinha fama de criminoso sanguinário, uma reputação para a qual ele próprio contribuíra, mas a verdade é que nunca até então matara o que quer que seja. Esgaravatara os mortos na casa mortuária quando era jovem, mas isso eram contas de outro rosário. Ali sim, teria de disparar, acabando de vez com o sofrimento de Ricardo Pombo.

Encostou o dedo ao gatilho e pensou no descanso que aquele homem iria ter assim que ele disparasse. O que era o ioga que ele próprio chegara a praticar, o que eram as outras técnicas de exercícios mentais ou físicos para libertação da mente, comparada com a morte, único meio capaz de garantir a tranquilidade eterna? Nada! Um, dois, três...

Foi então que começou a tremer, uma sensação estranha apoderou-se de si fazendo-o tiritar como se estivesse com febre. Tremia tanto que em poucos segundos lhe doíam a cabeça e o peito. Baixou a arma mas o simples gesto de a guardar assumiu contornos de uma extrema dificuldade. Nunca tal lhe acontecera. Por um momento teve a sensação que a penumbra da morte o procurava. Tiritava de tal forma que não conseguiu deixar de pensar, que daria tudo naquele momento para ser ele o morto-vivo à espera que o vivo-vivo, o despachasse com um simples tiro na cabeça.

Agarrou na mão do moribundo e por dois segundos teve a sensação que ele morrera. Mas não, Ricardo Pombo continuava vivo, muito provavelmente em coma. E se o enterrasse vivo?

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Colocar o cadaver Mão do moribundo Encostou o dedo ao gatilho
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