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A Opinião de Miguel Real


TEOLINDA GERSÃO - CARTOGRAFIA DA EXISTÊNCIA

2015-06-17

Passagens, novo romance de Teolinda Gersão, é porventura o seu texto mais realista, evidenciando a evolução da família em Portugal desde o Estado Novo até aos momentos actuais. Um realismo que, como o nome indica, espelha os movimentos sociais mais relevantes, desde ao fascínio feminino de Olímpia por Tiago, recusando-se a acreditar que o marido lhe mentia, expressão do estatuto da mulher ao longo da primeira metade do século XX, até à atracção física actual entre Joana e Miguel e a incontrolável paragem de ambos num motel a meio da estrada para se amarem.

Com efeito, o novo realismo de Teolinda Gersão não é feito da mesma massa do realismo prevalecente no romance português entre os finais do século XIX e a década de 1950. Não só não respeita a cronologia como assenta em situações e momentos sociais instantâneos simbólicos, uma espécie de nós semânticos e ideológicos do texto, condensadores do tempo, pelos quais confluem passado, presente e futuro. Neste sentido, a categoria de tempo evidencia-se como eixo central de Paisagens (e dos restantes romances da autora), centrado na morte de Ana (anúncio, velório e cerimónia fúnebre), pela qual se desenha o realismo da evolução da sua família no último meio século. Pelo presente – o presente do texto, desdobrado nos três momentos referidos, que constituem as três partes do romance – o passado é evocado pelas personagens em contínuos fragmentos recorrentes, tecendo uma espiral temporal descontínua na qual cada momento é apresentado desligado dos restantes, retornando sempre ao acontecimento inicial: a morte de Ana.

Neste sentido, o fragmentarismo e a descontinuidade textual habituais nas narrativas de Teolinda Gersão são unidas apenas na mente do leitor, que, no caso de Passagens, rememora, vai rememorando, ao longo da leitura, as falas teatrais de cada personagem, e elas são múltiplas: Marta, António, Eduardo, Miguel, Hugo, Rosinha, Madalena, Joana…, as senhoras do lar onde Ana se encontra internada, bem como os mortos invocados, Bernardo ,Tiago, Olímpia, Laura… A arte da narrativa em Teolinda Gersão reside na suprema mestria de criar pequenos dédalos mentais com base nas “falas” isoladas das personagens: cada uma, falando para si, fragmentária e descontinuamente, acrescenta um dado novo à construção do labirinto global que constitui o tecido geral da história. Maria Helena Martins Dias designa com acerto esta arte de contar uma história por Teolinda Gersão como “realismo intimista” (O Pacto Primordial entre Mulher e Escrita na Obra Ficcional de Teolinda Gersão, S. Paulo, 1992, pp. 17 ss. – policopiado): realismo, porque dirige o texto à representação do real; intimismo, porque este é representado por via da consciência da narradora ou das personagens. Com efeito, a totalidade de Passagens desenrola-se no interior da consciência das personagens (aqui representados ao modo do drama teatral), como se o romance constituísse uma gigantesca mónada mental e dentro dela se transitasse de consciência para consciência, de ponto de vista individual para ponto de vista individual, sem nunca se evocar as fontes reais senão a vida existencial de cada uma.

Como na maioria dos romances da autora, as personagens principais de Passagens são mulheres e é o seu ponto de vista social que é tematizado: as ilusões de Olímpia, a vida fracassada e a morte de Tiago, o laborismo e as depressões de Marta, o quotidiano das empregadas do lar, a vida de Ana com Bernardo, a agitação dos filhos, os netos, Luísa como segunda mulher de António e a aparente rivalidade entre esta e Marta…, intentando captar os momentos existenciais de passagem, tanto da vida para a morte (pp. 129 – 130) quanto os momentos principais de desequilíbrio no interior de uma vida, que à de todos está interligada: “Também nós, os vivos, andamos em viagem, a cada instante mudamos de visão e perspectiva, o nosso mundo interior é um contínuo, tudo é sempre uma sucessão de passagens” (p. 141). É justamente o que Teolinda Gersão pretende captar literariamente: os momentos individuais de passagem de uma fase para outra no toda da existência de cada leitor, figurando-os em diversas personagens com vidas diferentes. Uma espécie de cartografia geral da existência apresentada de um modo labiríntico.

Presumo que pela primeira vez um romance português aborda o tema da eutanásia. Ana, internada num lar, percebendo constituir a sua velhice uma fonte de incomodidade e de embaraço para a vida dos seus descendentes, aborda sem sucesso Hugo, o neto médico, para que este lhe receite uns comprimidos que a ajudem a morrer (p. 147). Não conseguindo, simula que sofre da doença de Alzheimer, para libertar os familiares das contínuas visitas (p. 81), já que finge não os conhecer, nem mesmo a filha Marta, passando a representar uma loucura que não possui. O drama da velhice e da decadência é aqui evidenciado com todo o realismo.

Fragmentário e descontínuo, a melhor maneira de começar a ler este romance será, porventura, pelo texto final, entre as pp. 165 e 183, um dos mais belos hinos à Mãe, texto tão realista como lírico, mesmo enternecedor, digno de figurar em futuras antologias dedicadas a este tema.

 

Passagens,
Sextante, pp. 183, 15,50 euros.

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