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A Opinião de Paula Mota


Marzahn, Mon Amour, de Katja Oskamp

2024-04-18

Tenho uma admiração imensa pelas pessoas que têm a coragem de mudar de vida quando chegam a um beco sem saída, seja ele pessoal, financeiro ou profissional, independentemente do seu percurso anterior ou habilitações académicas. Aos 44 anos, Katja Oskamp, depois de receber recusas de publicação da sua última novela por parte de 20 editoras e tendo o companheiro doente em casa, decidiu reinventar-se e fazer um curso para mudar radicalmente de profissão.

Os anos da meia-idade, em que já não és nova e ainda não és velha, são nebulosos. Já não avistas a margem de que partiste, e ainda não distingues com suficiente nitidez a margem para a qual te diriges. […] Desesperada, paras e rodas em torno de ti mesma, uma volta, depois outra e outra ainda. Surge o medo de ires ao fundo a meio do caminho, sem tom nem som.

Em vez de trabalhar com as mãos, em 2015, Oskamp passou a trabalhar com os pés alheios, tornando-se pedicura num enorme bairro residencial da ex-RDA.

“Marzahn, Mon Amour”, vencedor do Prémio Literário de Dublin de 2023, alberga as memórias pessoais da escritora alemã e as memórias colectivas dos habitantes de um bairro caracterizado como “um baldio de betão”, onde se encontra o gabinete de estética, visto que a maioria dos seus 60 clientes são idosos e guardam ainda recordações, tiques e traumas das décadas passadas atrás do Muro de Berlim.

Cada capítulo é dedicado às suas colegas ou aos seus clientes, quase como contos dentro de uma novela, onde o tom é, por vezes, humorístico, como na história de um ex-funcionário do antigo partido no poder; outras vezes, inspirador, como a de uma senhora que nem a cadeira de rodas faz abrandar, mas a nota predominante é a de um enorme respeito e ternura para com aqueles que procuram os seus serviços, já que a maioria são pessoas de idade e/ou com algum grau de incapacidade que as impede de serem elas mesmas a cuidar dos seus pés, uma parte do corpo tantas vezes descurada mas que, no fundo, é a base do nosso ser.

Ainda que a pedicura possa não parecer um tema muito literário, “Marzhan, Mon Amour” tem uma aura extremamente positiva e é uma lição de humildade que a autora aceita com graciosidade e empatia, apesar de a sua mudança de carreira nem sempre ser bem vista.

A princípio não falei a ninguém do meu programa de reciclagem. Quando mais tarde o fiz, acenando, a rir, com o meu certificado, deparei-me com uma antipatia, uma incompreensão e uma piedade difíceis de suportar. De escritora a pedicura era uma queda fulminante.[…] Não podia deixar que me demovessem. Tinha duas mãos saudáveis, capazes de fazer um trabalho útil.

 

Marzahan, Mon Amour, de Katja Oskamp, Relógio d’Água, Fevereiro de 2024, Tradução de Ana Falcão Bastos

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