Raízes - Maria Teresa Horta

Ponto de Honra
2010-10-20 00:00:00Poemas retirados do livro Poesia Reunida de Maria Teresa Horta. "Ponto de Honra", "Belzebu" e "Ritual do Amor".
PONTO DE HONRA
Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço
Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino
Contrario o meu destino
digo oposto do que ouço
Evito o que me ensinaram
invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho
Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto
Sou bruxa
Sou feiticeira
Sou poetisa e desato
Escrevo
e cuspo na fogueira
BELZEBU
Sou legião, sou quadrilha. Anjo caído
em desgraça. Matilha é o meu nome
rebanho, ubiquidade
Sou aquele que se torna ele mesmo
em corpo alheio
Sou negrura, sou carrasco, lobisomem, lucubrante
A Deus tiro-lhe
a face, sou lince, corro no mato
pelos atalhos do medo, a todos sangro a vontade
dobo o mal e risco o bem em tudo aquilo que faço
Nomeio-me Belzebu. Eu sou o resplendor
Na feiticeira eu entro como na casa do amor
sou príncipe luzeiro do escuro
Abelha e voo da águia, crueldade e impudícia
sou bando e sou cardume
em lume transformo a água
Cresço no topo do mundo, sou dono e sou senhor
enobreço o desvario, o delírio e a desgraça
embusco o sonho e a paixão e da torpeza sou asa
Multiplico o meu rosto no espelho do clamor
conspurco aquilo que for da inocência à pureza
com a marca do sedutor
Sou cardume, sou manada, alcateia, multidão
sou múltiplo, sou Satanás
Eu não conheço o perdão
Infâmia e emboscada. Sou agonia e maldade
desço às zonas do assombro. Varejo o ar escarlate
E estilhaço o coração
RITUAL DO AMOR
I
A fímbria do vestido
a fenda do vestido
As pernas cruzadas
na racha entreaberta
Os braços erguidos
e o vestido
subido nas coxas que já despe
II
Depois é a penumbra
e o vestido
a tirar pela cabeça
amarrotado
As mãos abocanhando
o cimo do vestido
no desatino - na pressa
que as invade
Acesa a carne
no ócio dessa tarde
liberta enfim da seda do vestido
que em vez de seda é sede
e é a tarde
acesa enfim no corpo sem vestido
III
A fímbria do vestido
a fenda do vestido
na febre em que
se despe
e é tirado
no hálito do quarto
ou atirado
e cai devagar
depois de ser despido
IV
Aos pés
está o vestido
amachucado
depois os joelhos no vestido
as coxas brandas e doces
no tecido
que vai cedendo ao gosto dessa tarde
V
A fímbria do vestido
a fenda do vestido
que se ergue
do chão
amarfanhado
o vestido que mal foi despido
conheceu do corpo
o peso do seu acto
VI
Assim volta à maneira
de vesti-lo
tornar a descê-lo pelos braços
cortando logo a tarde
e a ternura
perdida na penumbra desse quarto
VII
Quanta saudade
da seda do vestido
que à pele adere
num outro abraço
Baraço entorpecido
nos sentidos
secreta maneira
de tolher os passos
VIII
A fímbria do vestido
a fenda do vestido
Já só memória
o corpo todo
nu
Dissimulado agora pelo vestido
que os dedos abandonam
um a um
IX
A fímbria do vestido
a fenda do vestido
que o gesto alisa
ao descer o fato
Vestido que na fímbria
ainda é vestido
mas não na fenda
onde já se abre
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