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A Opinião de Paula Mota


O Estucador Assobiador

2024-05-08

O mundo está cheio de visões que esperam ser vistas. As presenças estão lá, mas falta o nosso olhar.

Vivo na zona antiga de um subúrbio, o bairro mais arborizado numa cidade caracterizada pelo betão, onde, por isso, muitas pessoas passeiam os seus cães, mas fico sempre desiludida e um bocadinho crispada quando as vejo de trela numa mão e de telemóvel na outra, quando há tanto para olhar em redor e mesmo para o alto, visto que os prédios são baixos e espaçados entre si. Se também eu andasse de nariz colado ao telemóvel na rua, não veria a exuberância da passagem das estações, não veria os cogumelos no outono, os jacarandás floridos na primavera, o ninho de falcões sobre uma caixa de estores, um pica-pau de passagem, uma garça no descampado ou até um ouriço-cacheiro a sair do seu esconderijo ao anoitecer. E como isso alegra o meu dia! Para a maioria, esse olhar sobre a natureza e esses avistamentos são ninharias, mas para pessoas como Christian Bobin são momentos preciosos que enriquecem a vida.

Contemplar é uma maneira de cuidar. É romper com tudo o que em nós se assemelha a cobiça, expetativa ou projeto. Olhar e emocionar-se com a semelhança entre o que temos diante e nós próprios.

Bobin é geralmente conotado com a religião e a espiritualidade, mas não creio que seja isso que revista a contemplação que refere nesta obra que pouco mais é do que um panfleto. Bobin não fala como um filósofo nem como um monge num retiro, porque não se refere a nada de transcendental mas sim às coisas banais do dia-a-dia, àquilo por que passamos habitualmente sem enxergarmos, sem interiorizarmos.

Os contemplativos, sejam eles quem forem, podem ser poetas reconhecidos como tal, ou pode ser um estucador a assobiar como um melro numa sala vazia ou uma jovem a pensar noutra coisa enquanto lava a roupa.

O “Estucador Assobiador” é um livro ambivalente: perante o ódio, a voracidade do avanço tecnológico e a crise de valores, o autor é optimista…

Voltaremos às coisas vivas e verdadeiras. (…) O homem não é mais malvado hoje do que ontem, apenas está mais perdido.

…mas há uma enorme dose de fatalismo na sua visão, advogando a necessidade de bater no fundo para se poder fazer tábua rasa.

É preciso que a escuridão se acentue ainda mais para que as primeiras estrelas – as primeiras, isto quer dizer que haverá outras – apareçam. É possível que uma crise económica seja uma graça, uma sorte. Isso vai desolar-nos, vai arrancar-nos da embriaguez, do irreal, da avidez, do consumo. Mas ainda não estamos aí.

Bobin foi premiado pelo conjunto dos seus escritos pela Academia Francesa, em 2016, somente seis anos antes da sua morte, exactamente na mesma região onde nasceu 71 anos antes.

É um dogma atual que a vida deve ser fácil. Quem disse que a vida deve ser fácil e prática? É prático amar? É prático sofrer ou esperar? A técnica afasta-nos destas coisas e fazer crescer uma lepra  de irrealidade que invade silenciosamente o mundo.

 

Estucador Assobiador, Christian Bobin, El Gallo de Oro Ediciones, Tradução de Maria de Azeredo, Novembro de 2023

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