Raízes - Ana Margarida de Carvalho
Pós-parto II
2016-03-16 00:00:00
A noite de ontem deixou-me
os sonhos intactos.
Horas fendidas por lâminas
pálidas, que resvalam afiadas, e não
se detêm em nervo ou cartilagem.
Que nunca se devem autopsiar os sonhos,
dizem-me,
como quem disseca uma rã, alisar-lhe o visco da pele, antes de fazer
a incisão, com a limpidez do bisturi,
e assistir ao lento naufrágio da existência
do anfíbio narcotizado,
despojado dos seus interiores,
até ser só ridículo invólucro,
fantoche grotesco,
abandonado como a gabardina da vítima na cena do crime,
entre a amálgama de vísceras, chuva, sangue,
e as larvas semi-deglutidas,
pequeno-almoço da manhã.
Cheira a febre e a lençóis húmidos,
e eu já só tenho esta aguadilha desmanchada,
desordenada e disforme,
que pinga gelatinosa,
que mal contenho entre as mãos,
e corro para te contar. O sonho intacto da manhã
agora é um embrião desfeito, de qualquer coisa
que não chegou a nascer.
Muco, placenta, bolhas purulentas, caracol sem casca,
ovo galado aberto antes do tempo.
Rasto.
Mas tu desentrelaças-me os dedos, desinteressado
da pingente amálgama que já se estatela no chão,
e se escoa entre as frinchas do soalho,
e tratas antes de averiguar se o meu sutiã
tem fecho de abrir à frente.
Voltar