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Raízes - Ana Cristina Silva


Rimbaud

2012-06-20 00:00:00

Rimbaud

Naqueles países longínquos, o deserto enquadrava a passagem do tempo. Não havia estações de florescimento nem de decadência. Apenas sequências de dias e noites, pedras, areia e vento. A neblina do céu nunca se distinguia da névoa das areias. Pairavam juntas num local onde não existia horizonte, por isso o deserto aproximava-se da eternidade. Ali ficava-se mais perto do céu e as estrelas misturavam-se com o corpo.

Arthur

Matei um homem em Chipre e fui obrigado a fugir. Havia voltado para a ilha e trabalhava numa empresa que construía o novo palácio do governador. Eu era um capataz competente e versátil em línguas. Já referi o efeito que o calor de Chipre tinha em mim. Passava os meus dias no meio da poeira ou deslizando em cima de calhaus aguçados. Dava as minhas ordens vestido como os antigos guerreiros do deserto, o rosto velado por um lenço. A fadiga insinuava-se em todos os recantos do espírito, expulsando da minha boca as frases mais sensatas. Talvez por isso, uma tarde, gritei furioso com um dos trabalhadores que atrasava todo o grupo no transporte de mármore. A certa altura, agarrei num calhau e atirei-o na sua direcção. A pedra arrastava uma força sobrenatural, levando consigo a desgraça. Lancei um longo olhar de desespero quando vi a minha vítima desfalecer e uma auréola de sangue em redor da cabeça. O seu corpo imóvel e os olhos vítreos e dilatados produziram um turbilhão na minha mente, como uma vaga de terror que de súbito se desenrola. Dois operários confirmaram aos gritos que ele estava morto. A queimadura do medo expandiu-se em mim, aglutinando-se nas vísceras. Fui cobarde. Desatei a correr pelas ruas vazias da cidade, escolhendo vielas desertas, contornando as praças. Quando parei diante da minha casa, o coração batia-me com tanta força que mal conseguia respirar. Agarrei nas minhas poupanças e corri para o porto. Uma hora depois seguia num barco em direcção ao Egipto.

Antes de chegar a Aden, percorri o mar Vermelho. Atraquei em vários portos com nomes árabes, onde a dança dos desembarques seguia o seu ritmo numa atmosfera escaldante. Naquela cidade tórrida instalei-me no Grand Hotel, local onde se reuniam os europeus. Criados indígenas alisavam as toalhas, endireitavam as cadeiras e homens de várias nacionalidades interrompiam a conversa por instantes para relembrarem ambientes sofisticados com magníficos candelabros. Memórias de salão onde rodopiavam mulheres adoráveis desenrolavam-se diante dos seus olhos e depois desapareciam. Então, o ruído das vozes dava de novo a volta às mesas. Naquele local travei conhecimento com vários cavalheiros, Julles Borelli, o explorador, o comerciante César Tian, o italiano Ottorino Rosa. Entre eles estava também Monsieur Dubar que me ofereceu emprego na sua empresa comercial.

O meu trabalho obrigava-me a ir ao porto quase todos os dias para comprar lotes de café e despachá-los para a Europa. Os árabes que atravessavam as passarelas, vergados pelo peso das mercadorias, causavam-me às vezes pena, porém, não eram mais miseráveis do que os descarregadores dos cais de Londres. Passava ali dias inteiros. Não sentia cansaço nem calor, tão-só a excitação do comércio. A minha mãe ficaria orgulhosa se me visse regatear preços. Todavia, se continuasse em Aden, inevitavelmente acabaria por aborrecer-me, porque o tédio sempre fez parte dos meus humores quando executava as mesmas tarefas por um longo período de tempo.

Tudo mudou quando Bardey, o outro sócio da companhia, regressou de Harar. Demo-nos bem desde o primeiro encontro. Ao fim de alguns dias, propôs-me que fosse chefiar uma sucursal da empresa na cidade de onde viera. A voz dele era firme, como se tivesse todo um plano na cabeça e aquilo que dizia combinava com novas aventuras. Não referiu, evidentemente, as ondulações duras da luz, cozidas pelo terrível sol do deserto, nem as grandes dunas de curvatura amarela. As ordens eram para partir de imediato com o meu jovem colega grego, Constantino Rhigas, de forma a aproveitar os guias e condutores de camelos que ele, Bardey, deixara no porto de Zeilah.

Nas vésperas da nossa partida, sonhei com um poema. No meu sonho desfrutei dessa felicidade passageira que surge quando as paredes das palavras se tornam quase transparentes e, por isso mesmo, regem, com chamas fugazes, as emoções. Contudo, quando abri os olhos soube que a minha vida de poeta pertencia ao passado, extinguira-se para sempre. Os versos nunca mais profanariam as minhas lágrimas O silêncio passara a ter densidade, o que por si só era uma forma de viver. As minhas frases escritas passariam a relacionar-se com factos e nunca mais com versos.

Uma viagem em África era feita de numerosos esforços. Chegámos rapidamente de barco a Zeilah. Antes de seguirmos viagem para Harar, eu e Constantino tivemos de nos apresentar ao sultão Abu-Beker, o homem de quem dependia a passagem de todas as caravanas por aqueles territórios. Era um velho magro, cujo rosto muito preto apresentava feições de europeu. Serviu-nos uma xícara de café. Os princípios e o dinheiro ali de nada valiam, só contava a vontade do sultão. Rapidamente, percebi que os meus apelos podiam ser reduzidos a nada. O meu rosto estava crispado de tensão, as mãos tremiam ao de leve e os olhos esqueciam-se de pestanejar. Não sei que impressão causámos, mas, com frases curtas e resmungadas, deu-nos autorização para prosseguirmos.

Conseguimos reunir uma pequena caravana em poucos dias. Eu seguia atrás dos guias, mas era como se andasse à deriva, arrastado pelo vento do deserto que soprava sempre, queimando-me os lábios, vento cruel que cegava e que apagava da visão os outros homens e trilhos. O sol e a poeira pareciam nunca terminar e o suplício do deserto expandia-se pelos dias. Às vezes, de noite, um cântico dos cameleiros, ultrapassava a cortina do silêncio e persistia como se planasse acima das nossas cabeças.

Os guias avisaram-me de que as feras acompanhavam os viajantes à distância e se alguém caía da montada, precipitavam-se de imediato sobre o seu corpo. Depois, os restos do cadáver servia de alimento aos abutres, se alguns houvesse a olhar do céu. Atravessámos territórios horríveis em que não se viam aldeias durante milhas e aquelas que existiam os habitantes eram hostis. Passámos pelas terras dos Gala e não foi difícil de compreender como o menor erro podia ser fatal. Encontrámos também vários homens da tribo Danakil que exibiam cintos com os testículos dos inimigos. Pareciam tão indiferentes à caravana como os pássaros vermelhos que avistávamos ao longe.

Surpreendentemente, o deserto terminava em montanhas verdejantes que rodeavam Harar. A cidade em si era uma terra santa sem uma história de santidade. Os edifícios tinham o tom baço da terra cozida. Cheirava a esgotos a céu aberto. O aroma dos bolos sem fermento e o perfume dos cravos-da-índia não conseguiam disfarçar os fumos de podridão.

Instalámo-nos na casa que Bardey tinha alugado para nós. Na primeira noite nem me dei ao trabalho de despir-me. As minhas ideias giravam em volta de um ponto firme, mas não era capaz de as fixar. Passei pelo sono, apenas o bastante para saber que dormi.

Uma das primeiras coisas que descobri foi que Harar era uma cidade de morte. Os poucos europeus que ali habitavam morriam depressa. Não eram condenados e, no entanto, pareciam sê-lo, pois rapidamente se transformavam em sombras negras de doenças, jazendo em casa na mais completa obscuridade, rodeados apenas pelos seus escravos. Oriundos de vários países, presos à vã esperança de enriquecer, perdidos num meio adverso, caíam doentes, numa altura em que tentavam por todos os meios regressar. Para muitos, era tarde demais. Aquelas formas moribundas faziam-se livres como o ar e quase tão leves como ele antes de irem a enterrar. Também os habitantes locais eram largados na rua para morrerem de fome. Por estarem tão debilitados, os homens não se distinguiam das mulheres, parecendo assexuados. Acasalavam apenas com a fome que lentamente os transformava em pele e osso. Possuía uma inabalável fé na minha imortalidade, pois corria a socorrer os doentes que eram depositados à minha porta. Foi assim que vim a saber que alguns pais comiam os filhos. Onde há fome deixa a repugnância simplesmente de existir e tudo a que se pode chamar princípios passa a valer menos do que uma folha ao vento.

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