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Crítica Literária por Miguel Real


O ROCK COMO FORMA DE VIDA

2014-03-28

Autor de Niassa (2008), magnífico romance que distinguiu o autor com o Prémio PEN Clube para uma primeira obra, só agora, seis anos depois, os leitores têm oportunidade de ler o segundo romance de Francisco Camacho, A Última Canção da Noite, a história ficcionada e abreviada das fortes influências do Rock internacional na consciência da juventude portuguesa a partir da década de 1960.

Romance sobre um passado recente, A Última Canção da Noite vive, evidentemente, de uma intriga predominante: o desaparecimento voluntário do compositor e guitarrista da banda inglesa "Bitters", Jack Novak, de origem croata, de personalidade espiritualista, à semelhança do real desaparecimento do cantor Jim Sullivam em 1975 no Novo México - história real narrada no cap. 3. Porém, mais do que da tessitura da intriga, sem o qual não existe romance, A Última Canção da Noite vive sobretudo do conjunto restrito de personagens, cada uma constituindo um verdadeiro mundo social e culturalmente plural.

Acresce à construção diversificada das personagens, um conhecimento muito sólida da história do Rock, com inúmeras referências concretas e oportunas a bandas e músicas internacionais, que certamente despertarão a consciência juvenil de muitos leitores, ou iniciarão outras no passado recente deste género musical. São justamente estas referências que constroem a densidade social e histórica do romance, distinguindo-o, de uma forma absolutamente clara, de textos nostálgicos e revivalistas da ideologia New Wave grassante nas décadas de 60 e 70.

Como se sabe, se temos personagens de vida original, densidade narrativa que os suporta como húmus, uma intriga (um suspense, uma expectativa) e um estilo ou modo particular de trabalhar a linguagem natural - então, temos um bom romance, independentemente do género, do tempo e da história nele narrada. Com efeito, como já revelara em Niassa, Francisco Camacho tem o condão de possuir uma sintaxe que articula, sobre o léxico comum de classe média jornalística, imagens imprevisíveis que se colam ao leitor, despertando-lhe sentimentos passados. Não se trata de um léxico exuberante, luxurioso, antes a utilização das palavras socialmente as mais comuns, cuja articulação harmónica, em parágrafos relativamente longos, com ideias repetidamente desdobradas em três ou quatro frases, vincando-as na consciência do leitor, gera neste, por associação mental, estados de espírito semelhantes - leia-se, como exemplo da linguagem e do estilo do autor, o longo primeiro parágrafo do início do cap. 2 (p. 25).

David, o narrador, e Jack, o desaparecido, entranham-se no deserto marroquino em busca de dois diferentes destinos, o primeiro de Vera, seu profundíssimo amor (pp. 26 - 27); Jack, atormentado por um cancro, de recuperar o sentido de vida perdido. David, levado pela carta de Vera, falhará voluntariamente a sua busca (pp. 229 ss.); Jack descreverá a sua vida a David, cuja narração por este constitui a substância da totalidade do romance: "Tentaria [David] encarar os dois casos da mesma forma. Manter desperta a curiosidade pelo passado misterioso de Jack sem descurar o paradeiro de Vera..." (p. 72).

David Almodôvar, desempregado de uma agência de publicidade, acusado de plagiar um artigo sobre uma fadista exuberante (o leitor perceberá de quem se trata), tinha caído "num abismo de inércia havia três anos" (p. 28). É retirado deste "abismo" psicológico e de uma certa solidão existencial pela mão de um excessivo produtor comercial português, com fortuna própria, amigo de algumas personalidades internacionais do Rock - Victor Capri. Victor informa David que alojara em casa Jack e Lola, esta uma personagem típica do exotismo psicadélico da década de 60.

A narrativa de Jack evidencia a sua dupla origem escocesa e croata, bem como a infância passada em Lisboa, a criação da sua banda na década de 80, a sua passagem pela violentíssima guerra dos Balcãs ao longo da década de 90 e a infrutífera busca de serenidade na mítica (porque de origem materna) estância de férias La Herradura, na Andaluzia. Tomado pela vertigem da necessidade da solidão, Jack abandonara os “Bitters” na Roménia, atropelara milagrosamente um menino sonâmbulo, salvando-o da morte certa por hipotermia e dirigira-se a Berlim, onde é salvo da absoluta solidão por Erika. Num apartamento de Berlim, Jack volta a compor, legando ao mundo a sua última obra: “Prenzlauer Songs”. David, narrando a vida de Jack, lega ao mundo outra obra, um livro: “A Última Canção da Noite. Uma Biografia de Jack Novak”.

Um Cd, um livro, a erecção de um mito do rok – eis o que restou da perturbadora passagem de Jack Novak pelo mundo.


A Última Canção da Noite,

Oficina do Livro, 236 pp., 14,90 euros.

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