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A Opinião de Paula Mota


Caro Michele

2024-11-15

A cultivar a memória talvez sejamos tu, a tua mãe e eu, tu por temperamento, eu e talvez a tua mãe, por temperamento e, porque, na nossa vida presente, não existe nada que valha os lugares e os momentos que encontrámos ao longo do percurso. Enquanto eu os vivia e os guardava, esses momentos e esses lugares, eles tinham um esplendor extraordinário, mas porque eu sabia que seria levado a recordá-los.

-Osvaldo a Angelica

Na edição portuguesa desta obra de Natalia Ginzburg, a escolha do título talvez não seja a mais apropriada, já que “caro” (traduzido à letra do italiano) em vez de “querido”, como nós diríamos, denota uma distância e uma cerimónia que não existe no original, tratando-se principalmente de cartas de uma mãe, de uma irmã e de uma ex-namorada a um jovem de 22 anos que, primeiro, vive num estúdio onde pinta e, mais tarde, parte inesperadamente para Inglaterra, num momento de agitação política. Se aceitarem esta proposta de leitura, evitem a sinopse, visto que conta aquilo que acontece somente a 20 páginas do final.

Apesar de ser o ponto de convergência de todas as personagens, Michele é um protagonista invisível, pois tudo o que sabemos dele é através do que decide revelar em pequenas missivas, que pouco mais são do que instruções, e através daquilo que é referido ou contado em segunda mão por aqueles que lhe são próximos. São as três mulheres da sua vida as verdadeiras donas desta obra: a ex-namorada Mara, a irmã Angelica e a mãe, Adriana. Mara é uma jovem desaustinada mas muito viva que se vê a braços com um recém-nascido que poderá ou não ser de Michele.

Não é que o dinheiro resolva alguma coisa da tua solidão, do teu destrambelho, da tua vadiagem, da tua tontice. Mas todos nós somos destrambelhados e tontos numa parte algures dentro de nós, e, algumas vezes, fortemente atraídos pela vadiagem e por respirar nada mais do que a própria solidão.

-Angelica a Mara

Angelica tem a sua própria família e os seus problemas pessoais, mas serve de intermediária e mensageira, uma grande aliada do irmão.

Provavelmente, vai-se falando em voz alta e dando grandes risadas, para termos a certeza de não ter perdido a capacidade de pensar no presente e a faculdade de falar e rir alto. Mas mal nos calamos por instantes ouvimos o nosso silêncio.

-Angelica a Mara

Por fim, Adriana. Adriana... Sempre que Adriana escreve, sempre que Adriana fala ou age, invade-me uma tristeza indescritível.

Mas devo também dizer que perdemos naquele dia um tempo precioso. Podíamos ter-nos sentado e interrogado mutuamente sobre coisas essenciais. Teríamos sido provavelmente menos felizes, talvez tivéssemos sido, inclusivamente, infelicíssimos. Todavia eu agora recordaria aquele dia não como um dia feliz, mas como um dia verdadeiro e essencial para mim e para ti, destinado a iluminar a tua e a minha pessoa, que sempre trocaram palavras de natureza deteriorada e nunca palavras claras e necessárias, mas, pelo contrário, palavras cinzentas, formais, flutuantes e inúteis.

- Adriana a Michele

Quando se divorcia do marido, este decide que pode abdicar das quatro filhas, mas não de Michele, que é portanto criado longe da mãe.

Nem sequer se interessava pelas tuas irmãs. Só se importava contigo. E o seu afecto por ti parecia dirigir-se não a ti, mas a uma outra personagem que tinha inventado e que não se parecia em nada contigo.

- Adriana a Michele

Mais tarde, Adriana tenta ser amiga do ex-marido, mas isso só lhe traz dor.

É verdade que não costumávamos trocar palavra quando nos encontrávamos. Todavia, agora dou-me conta de que não era necessário trocar palavras. Elas [as memórias] estavam presentes naquela hora que passávamos no café Canova e que eu achava opressiva e interminável. Não eram memórias felizes, porque eu e o teu pai nunca fomos muito felizes juntos (…) Não se amam apenas as memórias felizes. A certa altura da vida, percebemos que amamos as memórias.

-Adriana a Michele

Compra uma casa no campo, na esperança de viver com o seu novo namorado, mas nada corre como planeia, as filhas mais velhas casam-se e tornam-se independentes, as mais novas passam pouco tempo em casa, e acaba por acolher a cunhada mesmo não a suportando, porque a solidão é um tormento.

Neste pentágono de ligações, não posso deixar de mencionar Osvaldo que serve de ponte e de apoio aos restantes intervenientes, um homem bonacheirão e misterioso, mas que deixa sempre um rastro de melancolia atrás de si.

Na sua ausência acontece-me detestá-lo ao recordar a sua voz calma e as suas respostas tão serenas e fugidias. Mas quando ele está, fico tranquila e aceito os seus silêncios e as suas respostas. Trouxeram-me os anos uma espécie de mansidão e resignação.

-Adriana a Michele

O niilismo destas personagens perante a noção de felicidade é desconcertante e infeccioso, e foi com um enorme vazio que terminei esta obra que, em termos de angústia, consegue superar “Foi assim”, que era até agora o meu favorito desta autora italiana.

Desejo-te tudo de bom e espero que sejas feliz, admitindo que a felicidade existe. Eu não acredito que exista, mas os outros acreditam, e não está dito que não sejam os outros a ter razão.

Caro Michele, de Natalia Ginzburg, Relógio d’Água, fevereiro de 2024, tradução de Luísa Feijó

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