A Opinião de Paula Mota
Caruncho
2024-11-26Disso morreram todos nesta família, de ódios seus e dos demais, mas sempre de ódios.
“Caruncho” é um daqueles livros que exigem ar puro, muito sol e talvez até um banho de sal grosso para nos libertar das más energias habilmente condensadas em apenas 100 páginas. Layla Martínez aprendeu bem todas as lições: as de Shirley Jackson com as suas casas assombradas e habitantes proscritas…
No andar de cima começaram a ouvir-se ruídos como o arrastar de móveis e o abrir e fechar de gavetas. Toda a casa estava furiosa com nós duas, notava-se em cada ladrilho e em cada tijolo.
…as do realismo mágico, as do gótico sulista, as das figuras das bruxas…
Esse boato sim enraiveceu a velha porque se dissessem que estava demente era-lhe indiferente mas não consentia que afirmassem aquilo dos gatos afinal ela gostava tanto deles até os tratava por você quando a velha nem o senhor tratou por você no tempo em que o serviu.
…as do macabro religioso…
As rezas caíam-lhe dos dentes sem que eu as ouvisse mas eu sabia que ela pedia a Santa Bárbara decapitada pelo pai no cimo de uma montanha a Santa Cecília banhada em água a ferver a Santa Maria Goretti assassinada quando a tentavam violar a todas as santinhas mortas pelas mãos de homens raivosos.
…e criou um livro original e pujante, protagonizado por quatro magníficas mulheres zangadas. Numa sociedade em que ainda hoje se lida mal com mulheres que levantam a voz, as chamadas histéricas, é refrescante ver estas que não se deixam espezinhar e decidem aplicar a boa e velha justiça pelas próprias mãos. Acho a vingança um desperdício de energia, mas ler sobre ela dá-me uma satisfação indiscritível.
Só que o meu pai não sabia que iria ficar trancado na prisão que estava a construir. Quando a minha mãe percebeu que nunca poderia sair daquele espaço, deixou de pedir aos santos e começou a falar com as sombras.
Nesta obra, parece-me até haver uma quinta protagonista, já que a casa de família é uma entidade própria, um poltergeist maligno que embebeu todo o rancor sentido entre as suas quatro paredes e que cria a simbiose perfeita, vivendo das suas proprietárias e alimentando-as numa sobrevivência autofágica.
Ainda não percebi o quê, perguntei, pensando que agora sim viriam as arranhadelas e os insultos e as pancadas porque não podemos açular a velha sem esperar que não se atire a nós. Mas não aconteceu nada disto, nela havia apenas desalento e um pouco de raiva, só um pouquinho, o suficiente para dizer não percebeste que desta casa não sai ninguém.
“Caruncho”, no entanto, não é apenas uma obra manifestamente feminista, já que o fosso entre classes é por demais evidente e explorado até às últimas consequências.
Mas detestam-nos a todos por igual sentem o mesmo asco por todos nós e esse asco toma conta de nós e envenena-nos e trazemo-lo num lugar tão profundo que acabamos por pensar que é nosso mas não é.
O termo “fenómeno” que a editora utiliza para descrever “Caruncho” não é, desta vez, um mero truque publicitário. Este fenómeno paranormal tem um subtexto subversivo que funciona tanto para quem deseja só uma boa história de terror como para quem procura uma mensagem política.
Eu amaldiçoava os parentes, os guardas civis, os padres, a quem quer que fosse, com todo o ódio que havia nas minhas entranhas e nas da casa porque sabia que no dia em que nós, os pobres, começássemos a cobrar dívidas, muitos não teriam sequer uma pocilga onde se esconder.
Caruncho, de Layla Martínez, Antígona, Março de 2024, tradução de Guilherme Pires
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