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A Opinião de Paula Mota


Os Dias do Ruído

2025-03-10

Só que o mundo hoje não passa de uma enorme caixa de ressonância. Milhões de pessoas que falam para milhões de pessoas que falam para milhões de pessoas. O ruído sobrepõe-se a tudo, à História e à verdade e aos nossos sonhos mais profundos, e as vozes que o compõem são, quase sempre, indistinguíveis.

Sou fã de David Machado tanto quando tem por alvo o público adulto como quando escreve para os mais novos. É um autor realmente talentoso e original que cria enredos cativantes e personagens convincentes, como pude novamente verificar com “Os Dias do Ruído”, um livro extremamente actual e ousado que só fraquejou na terceira parte, quando Machado parece ter perdido o arrojo em detrimento de um final quase, quase feliz.

A primeira ousadia é a de escrever do ponto de vista de uma mulher, tão consciente dessa decisão que até aborda a questão do género quase no início.

A jornalista eslovena que nos últimos dias me acompanhou diz, como se me elogiasse:

- O seu livro não parece ter sido escrito por uma mulher.

(…) Duas questões que, uma vez respondidas, talvez solucionem alguma coisa:

1)Como é que escreve uma mulher?

2)Eu quero escrever como uma mulher?

Se os homens escrevem de forma distinta e distinguível das mulheres, não sei, mas que David Machado se sai muito bem a pensar como uma mulher é o maior elogio que posso fazer-lhe.

No dicionário, a definição de “herói” é: pessoa de grande coragem ou autor de grandes feitos. Por outro lado, uma “heroína” vem definida como: mulher de coragem, de sentimentos ou virtudes excepcionais. A coragem parece ser um atributo universal. Mas depois é como se uma mulher não precisasse de fazer nada para além de sentir as coisas certas.

Laura é uma fotojornalista com experiência em cenários de guerra que matou um homem prestes a perpetrar um ataque terrorista num café em Paris, atirando-a assim para as bocas do mundo.

Na gritaria da caixa de comentários, sou feminista radical e descontrolada, fundamentalista anti-islão, inimiga das religiões, de Deus e da fé global, fascista frustrada, caçadora de emigrantes, racista inveterada, fanática da extrema-esquerda, psicopata neoliberal.

Depois deste acto de autodefesa a ter catapultado para o estrelato, aquilo que mais almeja e alimenta, decide capitalizar a fama e escrever um livro que se torna um gigantesco êxito e a leva em digressão pelo mundo inteiro, em sessões de autógrafos, palestras e entrevistas.

Querem saber quem sou, alcançar os meus pensamentos mais íntimos e ter a certeza de que estou do lado certo da História. Querem também não ter medo de mim. Eu dou-lhes todas as respostas, para não as perder, para que não deixem de me olhar, para poder continuar a caminhar sobre as águas. Mas há sarcasmo em quase tudo o que digo.

Laura é uma autêntica <i>badass</i>. É corajosa, provocadora, desbocada, um pouco misantropa e narcisista…

A dada altura [a terapeuta] troçou:

- Estranho não é ter matado aquele homem, mas que isso não tenha acontecido antes.

(…) Por vezes penso naquilo e passo em revista todos os homens com que me cruzei até ao Amar, em busca daquele que deveria ter matado e não matei.

…uma protagonista magnética para uma história que expõe toda a podridão das redes sociais e que se enche de adrenalina quando ela começa a receber ameaças de morte. Apesar de serem anónimas, Laura tem uma certeza inusitada:

A minha argumentação é fraca e, embora, não o expresse, baseia-se numa necessidade íntima de que a pessoa que me quer matar seja uma mulher. O que quero dizer é isto: não há qualquer comoção na ideia gasta de ser ameaçada por um homem. Eu preciso que seja uma mulher para poder acreditar que a vida ainda esconde dimensões inesperadas, nada evidentes e complexas, que somos capazes de ultrapassar a dinâmica tão antiga e automatizada das relações de poder.

A coação, no entanto, torna-se insuportável e Laura refugia-se no último sítio que lhe ocorreria, aquele que tanto ela como a irmã deixaram para trás há muitos anos: a inóspita casa do pai, um velho contrabandista de Peniche. Apesar da relação conflituosa com o pai e de a mãe estar doente e raramente a reconhecer, é nessa “fortaleza”, nesse regresso às raízes que se sente finalmente em sossego, ainda que mais psicologicamente vulnerável.

Não ter de fingir encontrar-me num patamar de inteligência superior é um alívio, quase uma conquista espiritual, mas também uma tragédia interior. Nesta casa – nesta cidade? – ninguém espera de mim uma oratória política e culturalmente consciente, carregada de eloquência. Lá fora, no mundo, também não, eu sei (se abordar o assunto como uma equação matemática). Mas parecer mais do que sou foi o que fiz a vida toda desde que saí daqui. Ao ponto de se tornar parte do que sou. Como não chorar essa ausência?

Esta narrativa algo fragmentária e episódica, com temas polémicos explorados de forma transgressora, é um verdadeiro <i>tour de force</i> de David Machado que, no entanto, peca pela suavização do tom com a mudança de cenário.

Mas o esquecimento não é possível nesta época em que tudo está registado e as máquinas decidem sozinhas quando está na hora de olharmos para o passado. Como é que podemos ser humanos sem nos esquecermos?

Os Dias do Ruído, de David Machado, Dom Quixote, Setembro 2024

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