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Sobre vocabulário


Tenho guardado, em rasgos fugazes que se alojam na memória, os sobressaltos vocabulares que se vêm sucedendo ao longo dos anos e ficam dormindo feiamente à dependura, como morcegos numa caverna. Não se trata dos resmungos, em parte admissíveis, com que se acolhem termos de marinharia, singularidades de época, ou sociolectos especializados. Isso acontece quando o autor procede a uma reconstituição que observe os preceitos clássicos da adequatio, tendo em mente a necessidade e a verosimilhança aristotélicas, recomendações sábias e exigentes. É compreensível que o esforço provoque alguns desconfortos e rabugens. Que o diga eu próprio, que tanta vez tenho protestado para comigo: «lá me obriga este a ir ao dicionário!». E é todo um levantar-me do sofá, marcar o livro, percorrer uma lombada, abrir um cartapácio volumoso, tornar a pô-lo na estante com sérios riscos para o lumbago, quando não advém a curiosidade de, após o vocábulo procurado (as palavras nos dicionários também são como as cerejas) tomar conhecimento abismado doutros que nem sonhava existirem.
Tem que ser assim? Não tem que ser assim: desde o tempo do meu trisavô que era, ao que consta, lavrador em Alvalade, que vêm bramindo vagas de génio, sucessivas e imaginosas, contra a velha noção de «decoro» e burguesices afins. Esse furor foi altamente criativo e deixou marcas tão vincadas na perenidade que não podem ser ignoradas. Porém, quando as vanguardas começam a estar cansadas, desdentadas, desmaquilhadas, desmemoriadas, repetitivas, e a prestar-se a passa-culpas da escassez de ofício e pobreza de talento, há que lhes pedir, com brandura, que se abstenham.
Reparo que, em poucas penadas, me saíram termos rarefeitos, mesmo nas universidades, onde se devia respirar a Língua Portuguesa a longos haustos (lugar-comum assumido: «longos haustos») como um ar de floresta, carregado de oxigénio. E bem sabe o irado deus dos escritores o esforço que fiz para ser corriqueiro e compatível com a Net.
O meu ponto é este: a avaliar pelas perguntas e observações que me são dirigidas em sessões públicas ou escolares de vária natureza, com referência a textos publicados há mais de vinte anos, noto de ano para ano nos circunstantes uma dificuldade acrescida em compreender o vocabulário, para já não falar em construções sintácticas ou figuras de estilo banais. Nessas intervenções é até muito perigoso utilizar a ironia ou recorrer a qualquer vocábulo sem curso nas televisões. Os alunos não percebem, os professores começam a não perceber. E quando os alunos ineptos ascendem à docência, ou a ofícios que impliquem o manejo da língua, a aproximação ao patoá começa a ser assustadora e a repercutir-se em jornais, revistas e comunicação em geral. Assim os escritores se guardem, embora já me pareça ver alguns de sapatos amarelos (alusão cifrada).
Que não haja ilusões: não se trata daquela proclamada renovação da língua que ocorre ciclicamente, robustecendo-a com a emergência de novos vocábulos e a natural obnubilação de outros. Também não falo de textos especialmente elaborados ou difíceis, mas dos que utilizam o vocabulário que qualquer pessoa medianamente informada supostamente conhece e pratica. Nem calculam a irritação interior com que se recebem os comentários que nos fazem passar por «difícil» e exemplificam com palavras que se usam todos os dias em casa.

Este espectáculo da miséria do vocabulário, que não pode deixar de exprimir a miséria do entendimento, agrava a sensação de termos sido vítimas de um grande desfalque que provocasse uma penúria atroz. Na ânsia de formar consumidores dóceis e manobráveis, a mesma galfarragem que exauriu os recursos nacionais procedeu, no ensino, à lobotomia da História e do Português. Os charlatães da economia deram a mão aos charlatães da pedagogia numa grotesca dança macabra.

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