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A Opinião de Paula Mota


Puro

2024-07-05

Imagina se toda a gente tivesse os dentes sadios de um negro? Os ossos dessa gente são valiosos. Mas da pele, a gente não precisa.

“Puro” é, pelo seu cariz histórico mas mais pelas imagens que evoca, uma história de terror. Baseando-se num execrável movimento real do início do século XX no Brasil, o seu conteúdo só podia ser chocante e arrepiante, no entanto, Nara Vidal cria episódios grotescos que são geralmente aplacados por uma escrita apurada e uma técnica narrativa original e eficaz.

Olavo explica

sou louco pelo meu filho. Ícaro é um menino bom, mas tem muitas limitações. (…) Fomos abençoados com Ícaro.

(…)

Olavo pensa

como essa criança baba, tropeça, me dá vergonha. Voa, Ícaro, voa.

Santa Graça é uma cidade definida pelo racismo e pelo capacitismo, onde levam à letra o Artigo 138 da Constituição de 1934 (“Incube à União, aos Estados e aos Municípios estimular a educação eugênica”) numa altura em que se seguia com entusiasmo o movimento eugénico no Brasil, que visava alcançar a pureza da raça branca, impedindo a miscigenação e a deficiência.

Lázaro fala

Ícaro, sai dessa janela, retardado. Deixa só eu crescer mais um pouquinho e vou virar político. Vou levar você lá pra casa do pinel. Manda a Íris acabar logo o serviço aí porque tem chão pra ela lavar aqui. Quem sabe hoje ela lava direito aquela mão preta dela e fica limpa e pura? Íris preta e suja. Ícaro retardado.

Num casarão sinistro vivem três velhas irmãs que um dia encontraram um bebé abandonado, a quem deram o simbólico nome de Lázaro, que “nasceu de ninguém querer”. Em frente, mora Ícaro, um rapaz que vive com as sequelas neurológicas de ter sido abanado pelo pai em bebé, numa casa em que a única pessoa que o acarinha é a empregada negra, Íris.

Íris pensa

lá se foi esse menino pra cama, amarrado e cheio de remédio. (…) Não queriam de jeito nenhum que eu ficasse com o menino. O menos contato possível era a recomendação médica conforme explicitavam uns papéis vindos de São Paulo. A gente aceita porque a vida é assim, mas dá vontade de matar essa gente, isso dá.

Gostei muito de “Puro” por retratar uma corrente social no Brasil que eu desconhecia por completo, ainda que o considere um pouco maniqueísta, em que as únicas personagens boas eram o menino deficiente e a empregada negra, já que todos os brancos fisicamente aptos eram seres hediondos, com a agravante de os membros da Igreja, por mais críticas que a instituição mereça à luz das notícias dos últimos anos, serem todos depravados.

Só mais 30 segundos para apreciar a capa desta obra de Nara Vidal. É esteticamente bonita num contraste entre branco e preto, tão essencial a esta história, e remete para uma imagem comovente de Íris, a mãe de um nado-morto, fruto da esterilização forçada.

Um anjinho de cara preta.

Puro, de Nara Vidal, Relógio d’Água, Dezembro de 2023

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