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A Opinião de Paula Mota


Augusta B. Ou as Jovens Instruídas 80 Anos Depois

2024-07-17

Creio que Agustina Bessa-Luís, que se queixava de ser mais conhecida do que lida, corre agora o risco de passar a ser um mito do nosso imaginário e não tanto uma escritora do nosso universo literário. Depois de ter ganhado estatuto de lenda por ter derrotado grande parte da Geração X no ensino secundário (liceu para mim), torna-se agora fonte de inspiração do mais recente livro de Joana Bértholo, devido à arrojada ideia de, aos 22 anos, colocar um anúncio no jornal em busca de um correspondente.

JOVEM INSTRUÍDA desej. corresp. c/ pessoa intelig. e culta.

Não tendo propriamente inventado o precursor de uma aplicação de encontros, esta decisão, nos anos 40, serve de base para estabelecer paralelismos com as actuais plataformas digitais através da protagonista de “Augusta B. Ou as Jovens Instruídas 80 Anos Depois”, uma jovem também de 22 anos, Augusta B., “sua quase homónima”, que procura incessantemente um match no telemóvel.

Augusta vivia imediatamente interessada no outro, em sentir-se vista, desejada, pertencer, em entender as sinapses irrefreadas do seu coração e do alheio.

Devido a um desaire amoroso, conhece Raquel, estudiosa, grande leitora, um pouco anti-social, que é basicamente a sua antítese.

Mais inusual que os hábitos de leitura – que nem no século anterior eram inteiramente modernos – era o desinteresse de Raquel pelo sem-fim digital. Tinha, como todas, um smartphone (…) mas não tinha redes sociais, nem interesse nelas, sobretudo não nas plataformas ostensivamente amorosas.

Tal como no conto “Natureza Urbana”, também aqui temos a magia da literatura na formação e acção das personagens e, numa obra fortemente intertextual, há citações da própria Agustina para corroborar ou contrastar as relações interpessoais 80 anos depois.

“A correspondência dava uma expectativa do tipo humano que se ia encontrar. O que é muito mais sólido. A palavra tem uma força que não tem a presença, nem as hipóteses que a presença física pode dar. É muito mais poderosa.”

Augusta compreendia absolutamente esta citação, mas não num sentido epistolar. Tudo se desenrolava num chat, e era no chat que ela avaliava com que tipo de pessoa estava a lidar.

Pressionada por Augusta, Raquel, que até aí apenas usava a aplicação do GoodReads, pondera inclusive abrir um perfil do Tinder totalmente composto por citações de Agustina, sem saber que a amiga…

Esboçava um esquema muito mais à frente, porque atrás; muito mais na vanguarda, porque na retaguarda; totalmente futurista, porque antiquado:

- Qual perfil, Raquel? Temos é de pôr um anúncio no jornal!

- Num jornal…? Ninguém lê jornais…

Raquel parecia não ver o que ela via: a força do gesto de Agustina.

Mais fácil dizer do que fazer e segue-se, então, a autêntica saga da protagonista para publicar um anúncio semelhante ao original. Porque os tempos de facto mudaram, o resultado não é brilhante e depois de ver a folha de anúncios do único pasquim a que tiveram acesso, fico a pensar no que será pior, se isso ou a algaraviada de termos ocos que caracterizam o mundo amoroso digital.

Não se deixava perturbar pelo aranzel de anglicismos que mapeavam a crescente possibilidade de situações desagradáveis, e muito disseminadas, do ghosting ao zombieing, passando por todas as formas de breadcrumbing, benching, orbiting, stashing, a agressiva ambiguidade do love bombing aos ardis criminalizáveis do catfishing.

Não me acontece muito, mas hoje sinto alívio por não ter 22 anos.

Augusta B. Ou as Jovens Instruídas 80 Anos Depois, de Joana Bértholo, Caminho, Junho de 2024

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