A Opinião de Paula Mota

A Guerra Guardada
2025-01-22“A Guerra Guardada” é a transposição para papel de uma exposição que esteve patente no Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, em 2022: “A Guerra Guardada: Fotografia de Soldados Portugueses em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique (1961-1974)”, que não vi ao vivo mas me parece um projecto muitíssimo bem-conseguido até mesmo em formato de livro, devido ao seu carácter multidisciplinar.
Partimos de memórias e de colecções fotográficas de homens comuns: soldados, sargentos e oficiais de baixa patente, representando a base da hierarquia militar. (…) Este grupo de homens trouxe consigo histórias e fotografias diferentes da visão autorizada pelo Estado Novo: imagens do quotidiano militar e de soldados fora de serviço (a beberem, a jogarem futebol, a passearem), encenações de pose bélica, retratos de populações africanas, fotografias de armamento e do rasto de destruição deixado pela guerra.
Assim, sendo, temos as “Fotos Contadas”.
Tocou a reunir e formaram-se duas filas para receber o pré, uma enorme e outra mais pequena. Então o que era? Em 1966, havia soldados de 1ª e de 2ª! Na fila maior, eram só negros que não sabiam ler e que foram incorporados nas forças portuguesas como praças de 2ª, a receber metade do salário. Na fila mais pequena, estavam alguns mulatos e negros que tinham a 4ª classe completa, e todos os brancos, mesmo os que eram analfabetos. Para ser praça de 1ª bastava ser branco! Foi aí que comecei a desmanchar o castelo de cartas em que estava metido.
As “Fotos Faladas”, acompanhadas de um QR Code com ligação a um vídeo do Youtube onde se ouve o autor de cada foto a contar a respectiva história. Creio que é impossível escutar o testemunho do furriel Gamito em “Como se fosse meu filho” sem algum grau de comoção, ainda para mais acompanhado pelo texto do escritor/tradutor Paulo Faria, “Chorar como homens crescidos”, que fez também chorar esta mulher crescida.
Como foi possível deixarmos estas histórias tantos anos ao abandono, tão sozinhos com os seus fantasmas, à mercê dos oportunistas que se mascaram de camuflado e se fazem porta-vozes espúrios da dor alheia, falando em “Deus, pátria e família” com o descaramento de quem acha que os tempos estão maduros para reciclar o entulho? Como é possível alguém atrever-se a confundir a justeza das reivindicações dos veteranos da guerra colonial com a justeza da guerra colonial?
Em “Avessos”, vêem-se apenas as dedicatórias no verso de um conjunto de fotografias, desde as mais formais às mais pessoais.
O quê? Se este avião é meu? Não Miquita! É o avião que me traz sempre as tuas cartas fresquinhas.
Ficaria contente com um livro inteiro de fotografias e de relatos dos seus autores ou protagonistas, mas este é enriquecido com vários textos com capacidade crítica sobre o conflito nas ex-colónias…
Certamente que apenas uma minoria dos mais de um milhão de portugueses mobilizados entre 1961 e 1974 para este conflito esteve envolvida em operações ou episódios de violência indiscriminada. Mas não terão sido assim tão poucos os que estiveram, grupo em que se incluem aqui os militares do quadro que tinham ainda uma carreira pela frente depois do adeus às armas em África. A teia de cumplicidades entre a PIDE e as forças armadas era por demais conhecida, e foi certamente um dos fatores por detrás da atitude globalmente indulgente do regime democrático para com uma instituição-chave na sustentação da ditadura e do colonialismo.
- “A guerra e os seus fantasmas”, Pedro Aires Oliveira -
…a correspondência trocada entre os combatentes e a metrópole…
O Estado Novo foi incapaz de controlar o que era contado e mostrado neste fluxo ininterrupto de correspondência, que chegou a quase dez toneladas diárias.
- “Olhar a guerra entre a antropologia e a história”, Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte -
…a censura e a manipulação da comunicação social da época…
A televisão foi um canal utilizado pelas Forças Armadas para estimular a adesão ao esforço de guerra. A primeira estratégia utilizada neste sentido foi a exibição do horror, sobretudo no ‘Telejornal’ e em documentários, alguns nunca exibidos. (…) Esta exibição televisiva foi complementada, desde o início, com a expressão do cuidado, sobretudo através de campanhas de solidariedade, mediadas pelo ‘Telejornal’, nas quais foram ganhando preponderância as actividades do Movimento Nacional Feminino.
- “Que guerra passou na televisão portuguesa”, Rita Luís -
…e toda a engenharia social criada pelo regime para justificar o colonialismo e alimentar a máquina de guerra.
Em meados do século XX, Portugal era governado por um regime autoritário e conservador, cujo aparelho de propaganda e censura garantia a unidade do discurso público sobre o país e o mundo. Vivia-se então a ficção de unidade e harmonia racial de uma nação espalhada “do Minho a Timor”. A simplificação e popularização do lusotropicalismo do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre permitiu consolidar um discurso de excepcionalismo que ainda hoje perdura.
- “Fotografia, censura e imaginação da guerra”, Maria José Lobo Antunes -
Um trabalho de excelência das antropólogas Inês Ponte e Maria José Lobo Antunes (filha de um veterano da Guerra Colonial, António Lobo Antunes), que prima pela clareza e pelo poder de síntese face a temas deveras complexos.
Quando os proprietários desaparecem, as fotografias abandonam o seu estatuto de objectos de afecto. Sem guardiões, deixam de habitar o lugar de uma narração praticada e transformam-se em fotografias-órfãs.
Eu, que pertenço à geração do pós-memória, acho imprescindíveis todas as reflexões sobre um assunto que durante tanto tempo foi silenciado e recalcado, ainda que acredite que seja tarde de mais para evitar este reabrir de feridas espoletado por qualquer gatilho de uma sociedade que tudo questiona, e ainda bem que o faz.
A Guerra Guardada- Fotografia de Soldados Portugueses em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, 1961-1974, de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte, Tinta da China, Setembro de 2024
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