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A Opinião de Paula Mota


Os Armários Vazios

2025-02-04

Como é que eu podia imaginar que isto acabaria assim? (…) Cuspir, vomitar para esquecer. A vida morre dentro de mim, do meu ventre. Quando, como. Narro-me. Ainda não tenho resposta.

Há uma característica única no conjunto da obra de Annie Ernaux que é a repetição. Como remói constantemente o seu passado, o que a leva, como ela mesma disse, a ser dissidente do seu género e da sua classe, a sua escrita é um jogo de espelhos. Por conseguinte, “Perder-se” e “Paixão Simples” são duas faces da mesma moeda, enquanto “Um lugar ao Sol”, “Uma Mulher”, “Vergonha” e “Não saí da minha noite” funcionam como uma tetralogia consagrada aos pais, e por fim, “Os Anos” abarcam tudo o que veio antes, juntando o individual e o colectivo. “Os Armários Vazios” não é excepção e surge como o contraponto ficcionado de “O Acontecimento”. Esta obra, contada por uma jovem universitária, realmente transmite num registo cru e acerbo a frustração de quem percorreu um longo e premeditado caminho como boa aluna para ascender socialmente a um meio diferente do seu, para, afinal, deitar tudo por terra devido a uma gravidez indesejada. É enquanto espera que faça efeito o tubo que a curiosa lhe enfiou no útero para lhe provocar o aborto clandestino que Denise se perde em pensamentos, primeiro pela falta de representação nos livros que devia estar a ler…

Não há lá nada sobre a minha situação, nem um parágrafo a descrever o que sinto agora, que me ajude a atravessar estes momentos horríveis. (…) Devíamos encontrar trechos escolhidos acerca de tudo, sobre uma rapariga de 20 anos que foi à fazedora de anjos, que sai de lá, sobre o que ela pensa enquanto caminha, quando se atira para cima da cama. Eu lê-los-ia e relê-los-ia. Os livros nada dizem sobre isso. Uma bela descrição da sonda, uma transfiguração da sonda…

…e, sem seguida, recuando até à tasca/mercearia da sua infância que tanto abomina, em que a esqualidez…

No inverno, na despensa das panelas, debaixo da escada da cozinha, de pé dentro da bacia de água com sabão que servia para lavar o corpo, os dentes, as partes baixas, tudo na mesma água sem enxaguar. E a minha mãe ainda a usava para esfregar o chão de tijoleira na segunda-feira seguinte.

…convive com opulentas imagens sinestéticas, na sua pueril relação de atração/repulsão pelo seu meio.

 Cubos de caldo de carne embrulhados em papéis dourados como rebuçados de luxo, salgados, queimam o céu da boca. Cachos de bananas em vagas doces. (…) Posso inundar-me de odores intensos no canto votado à perfumaria, lírios-do-vale, chipre, em frascos presos com elásticos a caixas penduradas nas paredes, levantar as tampas de estojos de pó de arroz Tokalon.

É quando entra para um colégio particular e começa a conviver com pessoas mais polidas que seguem regras de etiqueta e usam um vocabulário mais refinado, que Denise se sente diferente e, por vezes, diminuída.

Os risos, a felicidade e, de repente, tudo azeda como leite estragado, vejo-me, vejo-me e não me pareço com as outras… (…) As coisas deixam de ser como antes. Isto, a humilhação. Foi na escola que a aprendi, que a senti.

Mas cedo arranja uma solução para diminuir esse fosso…

Foi assim que comecei a querer ter êxito, contra as raparigas da turma, todas as outras raparigas, as pretensiosas, as afetadas, as mariquinhas… A minha vingança estava ali, nos exercícios de gramática, de vocabulário, (...) nas contas de somar.

…inversamente proporcional ao abismo que se abre em casa, com descrições impiedosas do estabelecimento, da clientela e sobretudo dos pais.

Eu fingia simplesmente que não via, fechava-me no quarto com os meus livros, ignorava as bebedeiras no bar. Mas as coisas afetavam-me, mesmo assim. Chorar, à frente do espelho, de punhos cerrados, farta, farta. Treze, 15 anos.

Os livros servem, portanto, de refúgio, mas também como factor de distanciamento dos outros…

A verdade, a verdade estava escrita a preto e branco, nos livros, era feita à minha medida. Eu observava do alto, tinha pena de quem não conseguia ler e compreender uma só página.

…até chegar à universidade e compreender que nem a literatura a arrancará das suas raízes.

A única coisa que fiz foi engolir ódio, revoltar-me contra tudo, a minha cultura não passa de imitação. Resta-me enfiar o nariz na minha merda toda. Até a literatura é um sinal de pobreza, o recurso típico para fugir ao meu meio. Falsa da cabeça aos pés, a minha verdadeira natureza, que é feito dela?

Tenho sido muito crítica em relação a Annie Ernaux, pois considero-a arrogante em “Os Anos” e indiscreta quando escreve sobre os pais, mas é quando se espraia neste tipo de autoficção que gosto de lê-la.

Armários Vazios, de Annie Ernaux, Livros do Brasil, Abril 2024, tradução de Tânia Ganho

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