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A Opinião de Paula Mota


Viagem no Proleterka

2025-02-18

Duas palavras acompanham-me como um estribilho: “viver” e “experiência”. Imaginam-se palavras para narrar o mundo e para o substituir. As duas palavras devem cumprir-se.

Disse Susan Sontag que Fleur Jaeggy é uma escritora selvagem, e eis o seu segundo livro publicado em Portugal a comprová-lo. Quem não gostou da jovem colegial desapegada de “Felizes Anos de Castigo”, escusa de lê-lo, já que é mais do mesmo mas a alguns graus abaixo de zero; quem, por outro lado, ficou hipnotizado com o bisturi com que a autora disseca uma infância e uma adolescência caracterizadas por um sentimento de orfandade, tem aqui um repasto tão farto quanto o minimalismo lhe pode oferecer.

É para o meu bem. Uma frase venenosa. Mas soa bem. Sei que aquela frase nunca foi de bom augúrio. Desde então piorou a minha situação de menor de idade. Há que proteger-se quando se ouvem ditames semelhantes. Quando se é refém do bem.

Quantas vezes pode uma pessoa ficar órfã? Em teoria, ao perder o pai e a mãe, mas no caso da protagonista de “Viagem no Proleterka”, tantas vezes quantas é abandonada e passa de mão em mão como um estorvo, até ser posta num colégio interno, e quando pensa que todos aqueles que decidiam o seu destino já estavam enterrados, surge a surpresa do final, que a faz pôr em causa toda a sua identidade.

Naquela época, não pensava nos mortos. Eles vêm tarde ao nosso encontro. Chamam quando sentem que nos tornámos presas e é hora de ir à caça.

Antes de mais, esta rapariga sem nome é a filha de Johannes…

A pessoa que me é inverosimilmente desconhecida. (…) Nenhuma intimidade. E, no entanto, um laço anterior às nossas existências. Um conhecimento no estranhamento total.

…um homem do norte que veio em jovem para o cantão mais a sul devido aos problemas de saúde do irmão inválido, onde conhece uma rapariga de origem italiana com quem se corresponderá mais tarde em francês, unindo nesta obra três das línguas da Suíça e polvilhando de termos alemães, de uma forma quase clínica, um texto originalmente escrito em italiano.

Quando a protagonista era muito pequena, a mulher de Johannes deixa-o e leva a filha, entregando-a depois à sua mãe para ir refazer a vida noutro continente.

Eram mulheres que governavam casas e pessoas. Longevas. Criados os filhos, as flores e as cartas tinham a primazia. As flores tornaram-se uma obsessão. Bem como as doenças e os parasitas. Que corroem folhas e pétalas. Mas as flores e as pétalas delas estavam quase sempre sãs, ao contrário dos jardins dos outros, que estavam doentes. (…) As mulheres daquela família tinham uma paixão autística por camélias, rosas e nada mais. Escassa propensão para os seres humanos.

Tendo apenas direitos de visita, não é mais sentimental a relação que Johannes tem com a filha.

Lacónico, Johannes apontava o que a filha fazia, aonde a levavam, o estado de saúde. Frases breves, sem comentários. Como respostas a um questionário. Não há ali impressões, sentimentos. A vida é simplificada, como se não existisse.

Sendo duas pessoas “em salas de espera”, é já um pai idoso e doente que convida a filha para um cruzeiro às ilhas gregas, a primeira e última viagem juntos, ele exausto e derrotado, ela prestes a fazer 16 anos, com as hormonas em ebulição e nenhuma disciplina.

O conhecimento é o único perdão, penso, que se pode alcançar.

Não há vislumbre de emoção em “Viagem no Proleterka”, escrito com uma esterilidade equiparável à das relações entre as personagens, uma frieza que aflige e se propaga. É um livro que pode ser apreciado pelo seu valor estético, o que me trouxe reminiscências de Marguerite Duras, ou, dependendo da experiência do leitor, como um proverbial dedo na ferida.

As crianças desinteressam-se dos pais quando são abandonadas. Não são sentimentais. São passionais e frias. De certa forma, algumas abandonam os afetos, os sentimentos, como se fossem coisas. Com determinação, sem tristeza. Tornam-se alheias. Por vezes, hostis. Já não são elas os seres abandonados, mas são elas que batem mentalmente em retirada. E vão-se embora. (…) Algumas crianças governam-se sozinhas. O coração, cristal incorruptível. Aprendem a fingir.

Viagem no Proleterka, de Fleur Jaeggy, Algaguara, Setembro 2024, tradução de Ana Cláudia Santos.

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