A Opinião de Paula Mota
O Desencanto
2025-06-25Fake it até que as pessoas te deixem em paz. Não podemos mudar o mundo, apenas tentar que o mundo não nos mude demasiado.
Não tenho problemas em confessar que desconfio sempre de escritores que vêm do jornalismo, apesar de algumas boas surpresas, sobretudo pela tendência para explorarem a contemporaneidade, o que vai bem com a lei do menor esforço, mas Beatriz Serrano toma o pulso à sociedade actual, a do digital, a do capitalismo, a da saúde mental frágil, a do consumismo desenfreado e do mercado de trabalho doentio. Neste zeitgeist que bem conhecemos, temos Marisa, de 32 anos, solteira, com um amigo colorido, que trabalha mais do que contrariada numa agência de publicidade há oito anos, que sofre de ataques de ansiedade e de choro mal o despertador toca de manhã e que tenta anestesiar-se com tranquilizantes.
Sei que o mundo seria um lugar melhor se não existissem trabalhos como o meu. Sei que me aproveito das inseguranças das pessoas e da sua vontade de prosperar numa sociedade em que não se pode melhorar. E sei disso porque eu própria, depois de uma jornada de 8 horas e várias conversas de elevador que me provocaram uma série de ideações suicidas de baixa intensidade […], acredito com frequência que a solução para todos os meus problemas está feita à minha medida num vestido florido da Zara fabricado no Bangladesh.
Não espanta, portanto, que o seu mantra seja “Heaven knows I’m miserable now” dos Smiths.
Morrissey cantava sobre a insatisfação que os trabalhos de merda provocam e a obrigação de pagar faturas, sobre a alienação que as horas no escritório causam e o pouco tempo para desfrutar dos verdadeiros prazeres da vida. À medida que fui crescendo, amadurecendo e trabalhando, a canção tinha em mim um efeito balsâmico e curativo, como quem ouve cantos gregorianos.
Marisa odeia tanto a sua profissão que o ponto alto do seu dia é imaginar acidentes que poderia sofrer para ficar uma temporada de baixa médica ou mesmo incapacitada. É humor negro que escorre destas páginas, mas, como se costuma dizer, a brincar se dizem as verdades, e “O Desencanto” tem tanto de exasperante como de lúcido, até para os que “se julgam a ovelha mais esperta do rebanho”. Esta autora espanhola compôs uma personagem hilariantemente descompensada que vai ficar na minha galeria das preferidas pelo que diz, pelo que pensa e pelo que ouve e processa com um sarcasmo perfeito.
Põem-me sempre a trabalhar nos projetos que incluem a palavra ‘empoderamento’ e perguntam-me se determinada frase de determinado anúncio pode ser ou não machista. Perguntam-me sempre se um tema poderia “incomodar as mulheres”, como se as conhecesse a todas. […] Pensam que sou a sua Mary Wollstonecraft particular, sempre de serviço para lhes tirar as dúvidas.
Quando a sanidade de Marisa já está presa por um fio e pensa que não há nada pior do que trabalhar com gente desmiolada e hipócrita, engolindo ansiolíticos como Smarties e trocando a terapia por visitas ao Museu do Prado, onde contempla o quadro de Hieronymus Bosch, recebe a notícia de uma iminente viagem de team building, que se revelará a gota de água.
A empresa como família. A ideia de que os nossos colegas de trabalho são algo mais do que colegas de trabalho para que nos custe horrores levantarmo-nos da nossa cadeira às 6 da tarde porque sentimos que estamos a abandonar o nosso irmão mais novo numa bomba de gasolina. Como não tenho filhos nem pais doentes e fui apanhada tão de surpresa que nem tive tempo de inventar uma doença rara, sou obrigada a ir.
Quer tenham um emprego que odeiem ou adorem, quer tenham um emprego em que se sintam com um hamster na roda ou tenham liberdade de horário, este livro é para vocês… se tiverem uma ponta de cinismo que seja. Se não tiverem, sorte a vossa, a vida tem-vos tratado bem.
Afinal, precisamos de poucas coisas na vida: alguém que nos ame, uma cama com grandes almofadões, umas latas de cerveja bem frescas e uns tomates que saibam a alguma coisa.
O Desencanto, de Beatriz Serrano, Bertrand Editora, Outubro de 2024, tradução de Rita Custódio.
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