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A Opinião de Paula Mota


Transgressões

2025-11-24

Apesar da minha paixão assolapada pela Irlanda e pelos autores desse país, demorei algum tempo a ceder à leitura deste livro, mesmo abordando uma das épocas que me atrai como um íman, os Troubles, o conflito que grassou entre protestantes e católicos, na segunda metade do século XX, na Irlanda do Norte.

Rebentou uma bomba em Belfast, anunciou.

Ele diz isto todos os dias, comentou o Jonathan, que se sentava ao lado dele. Pois, e hoje é verdade. Obrigada, Davy, rematou Cushla.

Jonathan levantou-se. Não foi em Belfast, declarou. Foi uma bomba-relógio destinada a uma patrulha a pé do Exército Britânico que explodiu antes do tempo, matando dois rapazes junto à fronteira. Os rapazes tiveram morte instantânea.

Bomba-relógio. Dispositivo incendiário. Gelenhite. Nitroglicerina. Bomba de petróleo. Balas de borracha. Carro de combate. Detenção. A Lei das Competências Especiais. Vanguarda. Era este o vocabulário das crianças de sete anos.

“Transgressões” tem no seu âmago a relação de uma jovem professora católica com um homem mais velho, protestante e casado, e era isso que, de facto, me afastava desta obra, o cliché explorado na ficção como se fosse novidade. Só que Cushla é uma protagonista magnífica, com um sentido de justiça muito apurado, e Louise Kennedy não permite que ela seja definida pela sua história de amor, se é realmente disso que se trata naqueles encontros clandestinos na garçonnière de Michael Agnew e naquele sexo patético à la Sally Rooney.

O caso entre estas duas pessoas de mundos em constante conflito no Ulster está enquadrado pela cena inicial, que decorre num museu em 2015, em que vemos uma Cushla envelhecida a encontrar-se inesperadamente com alguém cuja identidade só é revelada no capítulo final, num desfecho confrangedor que dá conta que as boas intenções podem trazer consequências inesperadamente nefastas.

“Transgressões” é muito mais do que uma obra sobre um amor proibido, pois ao existir num ambiente de cortar à faca, em que a população católica tem de conviver com o invasor protestante, sucedem-se os episódios de subjugação e de humilhação de uma comunidade, em que se reúnem as condições perfeitas para a revolta e para o terrorismo. Seja na Europa, no Médio Oriente, ou noutro local do mundo onde a autodeterminação é uma impossibilidade, é fácil perceber também aqui como são os jovens recrutados por movimentos independentistas.

Valha-me Deus, exclamou Cushla. Quer dizer que ele ia apenas a andar pela rua?

Nesta cidade, o relevante não é o que a pessoa faz, é o que a pessoa é, fez-lhe notar ele.

Cushla contou-lhe o que estava escrito no muro [“Fora com os católicos”], que os vizinhos lhes atiravam fezes. Contou-lhe que os colegas se metiam com Davy porque a roupa dele cheirava a fritos, que, para o miúdo, o facto de o pai ter arranjado trabalho era uma notícia.

Transgressões, de Louise Kennedy, Porto Editora, Março de 2025, tradução de Maria José Figueiredo

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