A Opinião de Paula Mota

Como Animais, de Violaine Bérot
2025-10-14Depois dos Pirenéus espanhóis de Irene Solà em Eu Canto e a Montanha Dança, chega Violaine Bérot, que se refugiou no lado francês dessa cadeia montanhosa quando tinha 30 anos.
Como Animais tem no seu cerne uma espécie de parábola contada através de um conjunto de depoimentos prestados à Polícia, com uma componente de tragédia grega dada pela existência de um coro, que permite a esta obra escrita num estilo coloquial passar uma mensagem vigorosa e inequívoca: quem se comporta como um animal, afinal?
Não, não estou a idealizar. Mas, para o senhor, que veio da cidade, isto não é fácil de compreender. Já não vê grande relação entre os animais e os humanos. Suspeito que tudo isso já não seja o seu mundo.
Ao povoado de Ourdouch afluem polícias e jornalistas depois de um caminhante ter sido atacado por um jovem eremita conhecido por Urso, que se fazia acompanhar por uma menina, ao que tudo indica, selvagem. Ao longo de 14 entrevistas recolhidas pelo comissário encarregue da investigação, juntam-se as peças do quebra-cabeças que permitem ao leitor perceber quem é este jovem e a sua reservada mãe, como se isolaram numa cabana de difícil acesso nas montanhas e qual é a sua rede de subsistência. Começando pela professora primária, que nos dá a perceber que o rapaz está provavelmente no espectro do autismo…
Se o deixássemos ao fundo, sozinho, se o esquecêssemos - enfim, quero dizer, se procedêssemos como se o tivéssemos esquecido -, era mais fácil. A verdade é que podíamos perfeitamente tê-lo esquecido. Ele não fazia barulho, não falava. Nunca falou. Penso que era de nascença.
…até às declarações da mãe desesperada…
É que me explicaram, era ele recém-nascido, que seria psiquicamente muito atrasado e que, por isso, teria de ser seguido toda a vida. Vivíamos na cidade, tudo o fazia gritar, o ruído dos motores e das buzinas […]. Se ouvia o canto de um pássaro, sorria. […] Foi por isso que viemos embora. Porque percebi que fechá-lo num hospital, digam os especialistas o que disserem, não era solução. […] Tinha necessidade de liberdade, e a professora propunha-me o contrário, fechá-lo.
…passam pelos nossos olhos os interrogatórios realizados a vizinhos, ao carteiro, a um caçador, a turistas, a pastores e, num desfecho dilacerante, à farmacêutica, pintando no geral uma imagem de tolerância e respeito pela diferença, desmistificando preconceitos infundados.
Ao observarmos a miúda que ele protegia, tínhamos invadido de novo o seu território, estávamos em falta, cabia-nos a nós sair dali. Reagimos simplesmente como diante de um animal selvagem que defende a sua cria. Ora, não podemos recriminar um animal por ter instinto, não é verdade?
E no discurso dos habitantes, as constantes referências a esse coro grego que são as fadas, a lenda local que até os mais cépticos reproduzem.
Os velhos insistem nessa tecla. As fadas, se tivermos a infelicidade de lhes tirar uma criança, tornam-se piores do que as bruxas. Dizem que o que se vai passar será terrível, que a aldeia nunca recuperará da maldição. Estou a repetir-lhe aquilo que oiço. Para eles, é preciso libertar o Urso e levar de novo a criança para a gruta.
Bérot leva-nos a meditar sobre o nosso lado animal: o que tem de primordial, como o cérebro reptiliano que nos traz o instinto de sobrevivência; e o que tem de brutal, quando nos deixamos levar pelos impulsos mais irracionais. Como Animais não precisa de muitas palavras elogiosas, tal como não precisa de muitas páginas para meter o dedo na ferida, por isso, é preferível o salto no escuro. Não se arrependerão.
Nós
as fadas
adivinhamos
o que pode significar
no mundo de baixo
ser menina
ser rapariga
ser mulher.
Como Animais, de Violaine Bérot, Antígona, Junho de 2025, tradução de Luís Leitão
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