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Raízes - Mário de Carvalho


GOSTAR DE ESCREVER

2013-10-01 00:00:00

Fico quase comovido quando, em volta, alguém me diz que «gosta de escrever». Para muita gente é importante deixar num papel ou numa tela o resumo dos seus dias, dos seus sentimentos e das suas reflexões. Ou os seus enredos. É um gosto legítimo e estimável. Por que não? Algumas dessas pessoas publicam, alargam o campo dos seus destinatários, alcançam mais longe. Passam a ser escritoras, pelo menos de acordo com o critério aberto que eu utilizo e que julgo ser o prevalecente nas associações da arte. Quem publica, mesmo que uma plaquete de poucas páginas em edição de autor, é escritor. Ponto final.

A não ser assim, entrar-se-ia numa interminável e estéril guerreia sobre qualidades. Escritor seria apenas o que correspondesse a determinado gosto. Ou, até, a tal ou tal enquadramento académico ou conjuntura de moda. Porquê excluir o que se entenda por subliteratura? Que sentido faz retirar aos escritores/locutores, por exemplo, o direito ao sucesso por se arrogarem uma popularidade protegida, de génese extraliterária? Nem todos assumem o jeito petulante de não terem aprendido nem quererem aprender. Há, mesmo nesta categoria, criaturas sossegadas, modestas e com a noção das suas limitações.

E também há escritores de grande voga que não foram lançados pelas televisões. Esse gosto é efémero, como o dos livros das stripteasers ou dos futebolistas? Poderá ser ou não. George Ohnet, Max du Veuzit, Corin Tellado, Barbara Cartland tiveram projecções universais e prolongadas. Na verdade, continuam a ter uma caterva de discípulos. Muito copiadores, aplicados e praticantes.

Uma vez, há largos anos, numa escola, uma rapariguinha vivaz, exaltou, de fiada, os nomes de Konsalik, Frank Slaughter e, se bem me lembro, Danielle Steel. Queria significar, muito declarativa que era frequentadora da verdadeira literatura. Agora, esta de que eu era portador… Que posso dizer a isto? Como explicar que são autores que enfadam à terceira página por não trazerem nada que seduza ou surpreenda? Que, pelo contrário, requentam velhíssimas fórmulas que já são conhecidas, pelo menos, desde Matusalém. Que os enredos (as «histórias») são previsíveis e de trazer por casa e não valem o investimento de tempo e paciência.

Mas a questão da qualidade é perigosa. Também na literatura culta nos aparecem obras laboriosas, de concepção e execução sofisticadas, em que percorremos páginas e páginas de bocejo, sem que, parafraseando o poeta, reluza algum talento. Moenga, lengalenga, maçadoria. Não há um relance, uma chispa, um sobressalto. Se fôssemos a apertar o conceito de literário, quantos nomes sisudos e respeitabilíssimos não ficariam de fora?

Então porque me comovo eu com quem «gosta» de escrever? Porque se trata de pessoas que aspiram a levantar-se acima deste nosso ramerrão de banalidade. Porque ainda conservam a inocência («torre de luar da graça e da ilusão», escrevia Junqueiro) de crer que as palavras são obedientes e arrebanháveis. E porque, finalmente, se continuarem subindo, atingirão as regiões assombradas pelos fantasmas dos grandes que saltarão de baixo de cada frase.

Mas, enfim, sei pouco destas coisas. Apenas quis assinalar um trilho para reflexão.

www.mariodecarvalho.com

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