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Raízes - Ana Cristina Silva


Um Homem Estúpido

2013-11-08 00:00:00

Desde que me tornei um escritor de sucesso na Alemanha, as livrarias e universidades passaram a convidar-me para proferir conferências ou realizar leituras dos meus livros. Às vezes, no meio da sessão, sentia que devia parar com aquilo, levantar a mão e dizer à assistência que não merecia a sua reverência, porque era de reverência que se tratava e que crescia sempre que meu retrato era espalhado por várias livrarias. No entanto, aceitava pressurosamente todos os convites, porque comecei a estabelecer uma ligação entre as viagens que fazia e a minha vida amorosa. Não tinha força suficiente para refrear o meu apetite por mulheres e havia sempre alguma que se aproximava de mim durante as leituras. Saía com elas para um bar, dava dois dedos de conversa. Íamos depois para casa delas ou para um hotel não sem antes avisar que de seguida me iria embora. Elas olhavam para mim, sorriam espantadas, sem acreditarem numa palavra do que eu dizia. Eram encontros tristes de gente solitária. Naquelas camas amplas, essas mulheres pronunciavam o meu nome como se eu fosse um estranho, um intruso. Eu próprio não me reconhecia enquanto as possuía, sobressaltando-me até com o seu orgasmo. Mal terminava de fazer amor e já a mulher em causa se me tornara indiferente e o que acontecera minutos antes parecia-me uma coisa supérflua.

Foi assim que travei conhecimento com Hellen, Christiane, Maria Braun, Viktória e muitas outras que nunca vim a saber o nome, mulheres sós, divorciadas ou simplesmente mal-amadas.

Nem todas as mulheres ficavam infelizes por eu me vir embora depois de uma hora de prazer. Conheci Hellen em Frankfurt na livraria portuguesa. Tinha acabado a sessão de leitura, ainda assinava alguns livros, quando ela veio por detrás e me sussurrou aos ouvidos um convite erótico com as palavras mais obscenas. Era uma alemã magra dos seus cinquenta anos. A minha decisão de a acompanhar foi uma total atrapalhação. Nunca tinha sido abordado daquela maneira. Tive a impressão de ser conduzido por uma conspiração de coincidências porque ao lado da livraria havia um hotel. Entrámos e pedimos um quarto. Fizemos amor de costas um para outro, ela com os olhos fixos na parede. No fim, apeteceu-me dizer-lhe qualquer coisa, mas não sabia bem o quê. Como o meu embaraço me impedia de falar, ela confessou-me que estava com um afrontamento. De facto, reparei que uma onda de calor parecia erguer-se dentro do seu corpo, uma onda poderosa, selvagem e expansiva porque ela ficou corada em toda a sua nudez. Então ela virou-se para mim e disse-me num tom sincero e firme: “Hoje, ao passear na baixa da cidade, descobri que os homens nunca mais se virarão por minha causa. Nunca tinha feito o que fiz hoje contigo. Queria simplesmente que alguém me amasse como se fosse possível voltar contemplar a minha imagem de outrora. Podes ir embora, eu fico mais um pouco.”

Para o caso de pensarem que estou a dar uma imagem de mim demasiado benevolente, apresso-me já a dizer que não tinha nenhuma vontade de a consolar e por isso fiz o que ela me pedia. Os afrontamentos anunciavam o fim de um percurso e eu não passava de um estranho, Ela sabia que nunca encontraria um clarão de cumplicidade nos meus olhos. Provavelmente, preferiu chorar sozinha.

Christiane era muito mais nova e conhecia-a numa viagem de comboio de regresso a Berlim. Atravessávamos um túnel de vários quilómetros quando metemos conversa. Talvez por não haver nada a ver pela janela a não ser luzes florescentes, ela disse-me que naquele dia fazia um ano que o filho de cinco anos tinha ido a enterrar. Fora um acidente de carro com o marido, mas ele não tivera a culpa, fora abalroado, acrescentou. Olhava através de mim enquanto ia dizendo aquelas coisas sem nexo que se dizem a desconhecidos. A irmã tinha-lhe dito para ter outro bebé, essa seria, segundo ela, a melhor maneira de esquecer. Naturalmente, Christiane recusou que a recordação do filho se transformasse numa sombra a ser apagada num sucessor. Durante meses tivera crises violentas de choro, acordava todas as noites à procura da criança convencida de que o filho ainda estava vivo e que se perdera algures dentro de casa. Guardava ciosamente as memórias dele. A morte do filho fez com que se separasse do marido. Ela acusava-o pelo acidente e passaram seis meses a ferirem-se e a dilacerarem-se um ao outro para que as lágrimas não cessassem nem o ardor da culpa esfriasse. Um dia o marido saiu de casa e ela nunca mais o viu. Certos dias o luto tornava-se num dilúvio de dor, então Christiane saía para a rua e procurava um homem, como se o sexo pudesse aliviar o seu desespero. Não sei como acabamos na casa de banho do comboio. O compartimento tinha uma minúscula janela, perto do tecto. A tarde desmaiava, mas a luz ainda era forte, o sol a correr ao longo da copa das árvores que ficavam para atrás do comboio, imagens tão fragmentadas como as do rosto de Christiane nos seus esgares de prazer. Tudo somado, não tínhamos mais nada a dizer um ao outro. Eu saí primeiro, voltei para o meu lugar, mas ela foi sentar-se noutra carruagem.

Estas terão sido talvez as duas aventuras mais estranhas que tive. Não queria ouvir as confidências das minhas amantes, queria apenas ir para a cama com elas e depois desaparecer. Conheci Maria Braun num encontro de escritores na Universidade de Heidelberg. Ela era uma jornalista que me veio entrevistar depois da minha conferência. Após analisar a personagem feminina de um dos meus livros, confidenciou-me que lhe parecia ser uma mulher nascida para mudar de amantes, esse era aliás o único sonho lírico de toda a história. Combinámos jantar nessa noite no restaurante do hotel dela. Conservo uma recordação de brancura desse jantar. As mesas, as cadeiras, a toalha, o vestido de Maria, tudo era branco, os candeeiros da mesa eram pintados de branco e as lâmpadas irradiavam uma luz branca. E, naquele ambiente de brancura, convidei-a a subirmos para o seu quarto. Já na cama lembro-me de Maria Braum me gritar: “Fecha os olhos, agarra-me pelas ancas, aperta-me com força”. Sei que insistiu várias vezes para eu fechar os olhos como se me quisesse levar para uma terra de encantamento que só se encontrava de olhos fechados. Ela própria nunca abriu os olhos e no momento em que o fez, eu já me estava a vestir. A brusquidão daquela despedida apanhou-a desprevenida e vi nela a inimitável expressão do choque enquanto lhe dizia adeus.

Não recordaria, provavelmente, este encontro com Maria Braun, se ela não se tivesse vingado. Não publicou a entrevista que me fez, mas assinou uma crítica do meu livro num jornal de referência alemão onde arrasava os meus méritos literários. Quando vi o ressentimento daquela mulher fiquei triste e o meu agente ficou ainda mais aborrecido quando lhe contei a verdadeira história. Só nessas alturas, sentia que precisava de me explicar. Não era propriamente um mulherengo, mas gostava de pensar que encarnava uma personagem que a nada se sujeitava.

Também não me lembraria de Viktória se ela não me tivesse contado que ia comigo para cama para se vingar do marido que a traíra. Encontrei-a num bar ao pé de minha casa e, contra todos os meus princípios, levei-a para o meu apartamento. Não tinha ainda trinta anos e fazia-me lembrar uma boneca de aspecto frágil e de grandes olhos azuis. Dormi com ela, mas foi como estar com alguém que não estava inteiramente presente ou inteiramente consciente. No fim, com o corpo sacudido por soluços, abraçou-se a mim como se eu fosse uma árvore e a minha firmeza lhe devolvesse a confiança perdida. Ainda mais bizarro foi quando ela se ergueu da cama nua. Durante uns segundos permaneceu como que enfeitiçada em frente ao espelho do roupeiro, observando o seu corpo como se fosse o de uma estranha. De repente, desatou aos gritos. Aquele corpo, dizia, chorando ao mesmo tempo, não conseguira substituir todos aqueles que o marido possuíra, aquele corpo perdera a sua batalha. Os seus gemidos tentavam anestesiar a mágoa de ter sido traída, exprimindo um idealismo ingénuo em que o amor era fiel e isento de contradições. Desatou a bater em si própria Saltei da cama e agarrei-lhe as mãos enquanto ela se debatia nos meus braços. Deitei-a na cama. Por instantes, ainda virou a cabeça de um lado para o outro convulsivamente, mas de seguida acalmou. Os seus olhos não olhavam para lado nenhum, estavam pregados no vazio do tecto, porém as lágrimas eram amarelas à luz do candeeiro e brilhavam como um fogo interior. Permiti que ela adormecesse e só depois saí para dar uma volta. Quando voltei para casa ela já tinha partido.

Estas mulheres sobreviveram à história insignificante que tive com elas. Mas da maior parte das minhas aventuras amorosas, a minha memória só regista o estreito caminho da conquista sexual: não me lembro do rosto da maior parte dessas mulheres, dos seus nomes nem da forma como faziam amor. Apesar de variar de mulher era como se o amor físico fosse uma repetição do mesmo. Pouco ou nenhum espaço lhes atribuía na minha imaginação, nem as distinguia realmente umas das outras. De facto, não me interessava em observar as suas expressões quando faziam amor nem em registar o que diziam no momento da volúpia.

Todas as particularidades dessas mulheres foram excluídas da memória como se não tivessem nenhuma existência depois de eu fechar a porta do quarto.
A originalidade de cada uma delas era aos meus olhos exígua e vã e seria uma perda de tempo interessar-se pela sua individualidade ou conferir-lhe algum valor. Havia o outro lado da moeda: como não projectava sobre elas um ideal, nenhuma me desiludia. Reconheço-o: era um homem estúpido.

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