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Raízes - António Figueira


Do tipo enquanto princípio artístico

2011-05-30 00:00:00

Nunca li “As afinidades electivas” em alemão; nas edições portuguesa e francesa que lhe conheço (uma edição da Biblioteca Arcádia de Bolso dos anos 60, infelizmente carregada de gralhas, e a clássica tradução de Pierre du Colombier para a Gallimard, de 54), tem sempre mais de 300 páginas. No entanto, coisa rara num romance com essa dimensão, conta com apenas seis personagens que conhecemos pelo respectivo nome – fora o enigmático Mittler, em que vários comentadores do livro quiseram ver um porta-voz do próprio Goethe. Todos os restantes actores da intriga romanesca são reduzidos à sua categoria funcional: o arquitecto, o noivo, o inglês… e nessa raridade dos nomes próprios pode encontrar-se mais uma manifestação da preferência, patente noutros aspectos do livro, pelo uso do tipo enquanto princípio artístico. Essa estratégia tipológica, como Walter Benjamin assinala na longa crítica que escreveu sobre a obra na década de 20, serve múltiplos propósitos, ajudando antes do mais a compor a teia de simbolismos que sustenta o encadeamento de fatalidades em que o romance pode ser resumido; mas, se afastarmos essa função de coadjuvante da progressão da tragédia, e nos ativermos apenas ao valor facial do dispositivo criado por Goethe, encontramos nele prenúncios de uma inquietante modernidade, antepassados de experimentações só tentadas em fases muito mais tardias da forma-romance. Podemos pois imaginar, no tempo de Goethe e Schiller, a suave paisagem da Turíngia (onde se situava, já desde o século X, a pitoresca cidadezinha de Weimar, a dois passos da qual, durante o nacional-socialismo, veio a ser construído Buchenwald) povoada por tipos humanos conhecidos apenas por letras ou números que “caracterizam, com incomparável certeza, a essência daqueles que designam”, e que vivem submetidos, no seu anonimato, a uma “fatalidade que espalha sobre o mundo a luz pálida de um eclipse solar”… (Benjamin). À superfície, ”As afinidades electivas” conservarão sempre a beauté exquise que, desde sempre, encanta a humanidade culta; nos negros subsolos que sob a obra-prima se ocultam, porém, parecem mover-se sombras de morlocks, esperando apenas o cair da noite para impor a sua lei…

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