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Raízes - Ana Luísa Amaral


The Dying Animal

2012-01-09 00:00:00

The Dying Animal

O animal a morrer vi-o eu, e era estrangeiro ao livro. À minha frente, sobre a cama, em cima da colcha branca de algodão, antes de ser levado ao sono mais antigo. Esse era o animal que morria. E aquele não era um capítulo, mas a cena real antes da sua morte, a verdadeira. E se eu tinha sido, para ele, sua, ele era meu, ou assim eu o pensava; fora-me emprestado pela vida durante quinze anos, uma vida. Dormiu comigo, saiu comigo, conversou comigo entre olho e voz. Conhecia-me os sons e entendia a luz com que eu às vezes abria a porta. Alguma escuridão, muitas vezes. O animal moribundo estava ali, o seu pêlo macio na minha mão, e não se chamava David, mas tinha um nome provocante e fino, um nome com corpo a lembrar cabarets, fumo, uma guerra distante, coisas roucas. Ou, em alturas de Verão e de tosquia, as pernas de Claudia Schiffer. Todavia, o animal morrente não era sofisticado. Quando amava, não ficava dividido, tacteando a ameaça de que ceder o coração era ceder a alma e o que somos. É verdade que ceder o coração é ceder a alma – e o animal morrente sentia-o, mais do que o sabia. Por isso lhe eram estranhos pensares ambíguos. Amar era amar, um espaço de salto no vazio – para o vazio. Subir uma colina, subi-la a pulso, a pata, porque se sabe que lá em cima o amado nos espera. Saber que o amado fará por nós o mesmo. Até um dia nos levar de automóvel, uma mão no volante, enquanto a outra nos afaga, palavrando baixinho, e nós a olhá-lo desveladamente. Até nos conduzir a cheiros fortes, a uma mesa branca, uma agulha, ele: a seta que, por amor, nos dá o esquecimento. Esta a canção dos amados, sem outras personagens. Sobre a colcha de algodão, muito branca, deitou-se este animal, à espera. Um pouco mais acima, junto da almofada e esquecido, tinha ficado o livro. A literatura é nada sem a vida. Mas a vida não é a literatura. O animal que ali esperava a morte, de forma gerundiva, era meu amigo. O livro era só palavras. E as palavras não aquecem pelas noites, nem pesam sobre as pernas, como chumbo –

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