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Folheando com... Valter Hugo Mãe


Prémio Saramago

2007-12-10

Ganhou o Prémio de Poesia Almeida Garrett, publicou o romance o nosso reino e, mais recentemente, o remorso de baltazar serapião, que lhe valeu a conquista do Prémio Saramago. Falamos, naturalmente, de Valter Hugo Mãe, um dos mais promissores escritores da nova geração.

O que o leva a escrever sem maiúsculas, Valter Hugo Mãe? Será também uma forma de criar uma estética linguística própria?
As minúsculas criam uma aceleração na leitura que me interessa. Tudo nos meus textos pretende uma precipitação do leitor, como se lhe retirasse os freios, e a escrita em minúsculas, abdicando também do maior número de sinalética possível, produz esse efeito. Além disso, sem dúvida que me parece ainda oferecer uma limpeza visual de que gosto muito.


só tínhamos de desviar as atenções do meu pai, não fosse ele saber das sevícias sobre a vaca, era bom que se agradasse de saber a masculinidade do filho posto na diaba, escola de tantos nós, mas da vaca eu não imaginaria que loucura lhe desse tal informação.

Em que momento da sua criação se lembrou de introduzir a vaca, que de resto dá alcunha àquela rude família, havendo inclusive a suspeita de que Baltazar Serapião e irmão seriam filhos da mesma?
A vaca sarga é fundamental para tonalizar todo o livro pelo lado da bestialidade. Surge como motor de toda a história, e escolhi-a fazendo um jogo com o Almada Negreiros que, no seu «Nome de Guerra», diz que os animais domésticos deviam ter os apelidos das famílias a que pertencem. Eu fiz o contrário: imaginei uma família conhecida pelo nome da vaca a que se afeiçoaram.
Gosto muito do Almada Negreiros, mais tarde ou mais cedo havia de lhe piscar o olho para uma singela homenagem.

O seu livro foi escrito com recurso a uma linguagem característica da Idade Média e com personagens rudes e ignorantes que espelham bem até que ponto o amor e o ciúme se podem tornar sinistros. Não acha que muitas das peripécias do seu livro podem ser descortinadas em pleno século XXI?
O meu livro não é histórico, não pretende ser um retrato da Idade Média e não é verdade que a linguagem usada seja característica daquele tempo. O trabalho deste livro teve exactamente que ver com a imaginação de um português que nos pareça antigo, que nos pareça talvez medieval, mas é um português imaginado, que não corresponde exactamente a nenhuma expressão concreta de nenhum tempo mais recente ou afastado.
Em relação às questões que levanta, sobretudo no que se prende com o machismo e a descriminação sobre as mulheres, o livro poderá colocar-se num limite, num certo exagero, mas todos nós sabemos que a igualdade das mulheres ainda tem muitas batalhas para vencer. Estou convencido de que, daqui a duzentos anos, os cidadãos do mundo olharão para nós como grunhos, um pouco mais polidos, mas grunhos ainda.

Ficou surpreendido com o Prémio Saramago? A conquista deste galardão pode alterar de alguma forma as suas novas criações? 
Fiquei surpreso, porque seria demasiado perigoso que escrevesse a contar com um qualquer prémio. Fiquei surpreso por o ter recebido com tal consenso do júri e tão grande entusiasmo de José Saramago.
O que este prémio poderá influir no meu trabalho passará sobretudo por uma motivação acrescida, nunca pela estilização num determinado sentido ou adopção de temáticas que pareçam mais populares. Escrevo há muitos anos e publiquei muitos livros já, também tive uma experiência como editor muito longa e muito rica. Acho que o meu caminho enquanto autor me pertence acima de tudo, no sentido em que optei sempre por aquilo que me é mais genuíno. Espero, no entanto, que os meus leitores, os de sempre e os novos, possam compreender o que faço e gostar. Fico sinceramente contente de cada vez que alguém me diz que gostou de um livro meu. Tenho medo de que seja uma vaidade, quero pensar que é antes um excelente prenúncio para uma amizade.
Este prémio poderá trazer-me mais leitores e mais amigos. Espero que assim seja.


D. Afonso, o senhor feudal, não deixa de ser uma figura misteriosa. Em algum momento estabeleceu um paralelismo com a situação actual?  
D. Afonso é, como um pouco todas as personagens, a representação de um estereótipo, neste caso a de um tolo com poder. Um homem não exactamente mau, apenas com as suas falhas, que se podem tornar trágicas pelo simples facto de mandar e desmandar em tanta gente. Acho que isso acontece a toda a hora. Mais do que pensar que o poder corrompe, descubro a cada passo que o poder está, muitas vezes, entregue às mãos de gente incompetente ou simplesmente desajeitada.

Como é que um escritor que se preocupa com a excelência e que se intitula de esquizofrénico, fazendo uso de um termo que utilizou numa entrevista que concedeu, analisa a profusão da literatura light entre nós? Acha que elas podem coabitar pacificamente?
Fora do contexto, dizer que sou esquizofrénico parece caso para me internarem. Disse-o no sentido em que necessito de modificar, de encontrar caminhos de alguma alteração para aquilo que já fiz e vou fazer. Gosto de redescobrir-me, para chegar a um resultado que me surpreenda e que consiga levar os meus limites a um outro ponto. Gosto de me desconhecer.
A literatura light é uma não literatura por definição. Não me afecta directamente a sua existência. Lamento apenas que o mercado se alicerce em boa parte nesses títulos colunáveis, fazendo com que as boas obras percam espaço de exposição. Entramos em qualquer livraria e uma percentagem grande dos seus escaparates estão entregues aos autores light. É fácil entender que o comum dos leitores se deixe convencer, mais tarde ou mais cedo, de que vale a pena comprá-los em detrimento dos livros que são escritos por razões de qualidade literária e não com finalidades eminentemente financeiras.
A coabitação não é e não será pacífica. Também não tem de ser – ou não deve ser, no meu entendimento – beligerante. Eu diria que é antes uma coabitação fria, sem guerra, apenas uma certa tensão que leva a que os escritores que buscam a qualidade exijam, quando confundidos, que se separem as águas.

Quais são as suas grandes referências literárias, Valter Hugo Mãe?
Misturo na literatura muitos artistas, de Bosch a Sade, de Kafka a Lisa Santos Silva, de Mizoguchi a Ruy Belo, de Lautréamont a Werner Herzog, de Bach a Manoel de Oliveira, entre muitos outros. Sou viciado em arte, e posso até considerar que a pintura e o cinema são mais indutores do que escrevo do que outros escritores. Depois de um quadro de Memling ou de um filme de Alejandro Jodorowsky pode acontecer de escrever horas a fio, sem dúvida com uma vontade enorme de seduzir esses autores para a minha arte também. Seria lindo encontrá-los, num tempo depois do tempo, e sentir-me perto deles, digno deles, como acho que é o sonho de todos os artistas.

O que vem a seguir à família Serapião?
Depois da família serapião virá uma história dos nossos dias. Uma história que procura um lugar mais nítido naquilo que somos hoje, ou, mais criticamente, naquilo em que nos tornamos. Será um texto menos estilizado, talvez, para simplificar o pendor linguístico em favor de um contexto mais questionador ao nível das éticas contemporâneas.

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