Excerto do livro «Autópsia De Um Mar De Ruínas»
No dia em que eu morri na guerra, estava este mesmo sol de cloro, parado e exangue nas minhas veias. O mundo parecia envenenado pelo cianeto. Tal como agora, as aves debandavam para o Sul, depois de sobrevoarem a paisagem do Norte, e pude reparar que o corpo delas se cobrira de uma cor de leite coalhado como o Inverno. Sei que estou perfeitamente morto, ou tanto quanto o possa estar um homem vencido pelas armas de guerra. Digam o que disserem, nada ainda se alterou desde esse dia: continua em mim a terrível e abismada destilação das horas, na viagem para o Norte. Os pássaros voam na sua nata envenenada. Sentado a meu lado, no banco corrido do Unimog, o Lamas acabou por adormecer. De vez em quando, a cabeça a baloiçar ao sabor das oscilações da viatura, vem pousar-me no ombro. O corpo ensonado parece um volume sem ossos, ao qual os solavancos transmitem a flutuação dos eixos sobre os relevos do terreno que vão percorrendo. Os outros fumam em sossego. Eram de facto amigos: passavam os mesmos cigarros de mão em mão, em silêncio, sem precisarem de falar. Esse mesmo me calou a mim para sempre, fechando atrás de si todos os sons e ruídos e repondo a ausência total do mundo dentro dos meus ouvidos. Desse dia da minha morte, começarei por recordar a poeira. Vinha de frente, em nuvens que se levantavam na picada à passagem das viaturas e que se enrolavam no ar, erguidas pelo vento que corria para trás, rumando portanto ao contrário do nosso caminho. Passavam aves sobre nós, na travessia da manhã, possivelmente a caminho do Sul, como se desertassem da nossa guerra. Nem os pássaros, nem a poeira da picada, nem os silvos do vento no ar, e tão-pouco o sol de cloro do Norte, queriam assistir à minha morte. O mormaço entrara profundamente em mim, o que acabou por amolecer o meu corpo e adormecê-lo ao som do motor, das pancadas dos eixos, dos pios das aves que debandavam para longe.