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A Opinião de Paula Mota


A Forasteira

2024-09-12

A morte fascina-os. Abordam o suicídio com uma naturalidade assombrosa, como se não fosse nada de especial, como quem desata a falar sobre a chuva que não chega, como se não houvesse uma separação entre a vida e a morte. Poucos haverá sem um parente ou algum conhecido que tenha tirado a vida a si próprio, na freguesia aqui do lado ou na seguinte. Os que se matam são protegidos pelos outros mortos, pela tradição agónica dos que os procederam. Falam dos suicidas com respeito, com uma certa veneração, como se um halo de mistério os situasse acima dos vivos.

É verdade que o assunto do suicídio me interessa, mas desta vez fui apanhada desprevenida. Conquistada pelo título e pelo género neorrural que os espanhóis exploram de forma tão existencialista, não contava com um enforcado logo no primeiro capítulo, mas, como cedo nos elucida a protagonista, “esta é uma terra de suicidas”. Aliás, nesta terriola do sul de Espanha, o suicídio parece ser quase uma maldição de família, uma família com segredos, uma família com um casarão, uma família no final da linha. A quem me refiro? Aos Marotos ou aos Maldonados, cujos terrenos contínuos se confundem? É efectivamente esse um dos pontos fortes de “A Forasteira”, uma obra muito atmosférica, de frases bem torneadas e de leitura viciante.

Depositamos amor nos seres, nas coisas, nos lugares, e depois não sabemos o que fazer com o que resta nas mãos por usar. Queima-nos as palmas.

É “Pedro Páramo” de Juan Rulfo que Angela está a ler, o que poderá dar pistas a quem conhece o livro, mas foi com duas excelentes novelas espanholas que estabeleci paralelismos durante esta leitura: “Os Santos Inocentes” de Miguel Delibes e “Caruncho”, de Layla Martínez. Em todas elas existe um fosso entre classes, a família rica, a dos “meninos”, para a qual uma família modesta se vê forçada a trabalhar, aliado a um forte sentimento de injustiça ou de humilhação e, por conseguinte, um equilíbrio que será reposto através da vingança. Para quem é sensível a estas questões, a última gota para Angie envolve os seus cães.

De madrugada, ouço murmúrios, os ecos de tudo o que foi dito entre estas paredes, estes velhos muros que me salvaram a vida e que a minha família quase perdeu. Os Marotos gostavam demasiado de jogar às cartas, de mulheres, de vinho. As casas têm memória. Às vezes, os mortos riem.

Angie, a “chalada do casarão”, é uma mulher com cerca de 50 anos que voltou para a terra da família depois de ter estado muitos anos emigrada em Inglaterra. Vivendo de um subsídio, do cabaz social entregue pelo padre local e de uns biscates sazonais e tendo por único amigo um imigrante africano, é uma solitária que tem como companhia dois cães, o vinho e a música.

As canções podem lixar-nos a vida. “With no lovin’ in our souls and no money in out coats. But, Angie, you can’t say we never tried.”

Ao domingo à tarde, junta-se aos outros desajustados, os “sultões do swing” na tasca do Tomás, “outro mono como eu na arrecadação da aldeia”, um velho hippie que põe a música certa.

Os Stones. Os Kinks. Os Smiths. Também os Pink Floyd e os Genesis, conforme o andar da tarde. Os Clash. “I fought the law and the law won”, lutei contra leis injustas, mas a lei derrotou-me. Passa todas as canções que ainda se ouvia quando cheguei a Londres e a bruxa da Thatcher, que já arreara forte e feio nos mineiros, andava atrás dos trabalhadores das artes gráficas.

“A Forasteira” representa uma realidade muito semelhante à do interior de Portugal, não só nas décadas de 60 e 70, com o abandono do campo e o êxodo para as grandes cidades, como também nos dias de hoje, com as aldeias e as vilas desertificadas ou para lá a caminharem a passos largos.

Conheço a solidão angustiante da paisagem, a gama completa de ocres, os verdes que brincam a ser azuis onde se encavalitam as lombas. Sei como conspiram os murmúrios – um rasgado de cigarras, toupeiras a escavar, o crepitar dos cardos penteados pelo vento – para espessar ainda mais o silêncio. O tempo anda há séculos encharcado num presente eterno no qual cada momento é idêntico ao seguinte.(…) A planície esvazia-nos a cabeça. Se sucumbirmos ao seu doce abraço, vai-nos despojando do corpo, naco a naco. A terra faminta reclama o que lhe pertence, o que nunca devia ter saído daqui com a diáspora da fome.

A Forasteira, de Olga Merino, Quetzal, Agosto 2024, tradução de Margarida Amado Acosta

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