A Opinião de Paula Mota

O Caderno Proibido
2025-04-07Compreenderá, tenho a certeza, porque todas as mulheres escondem um caderno negro, proibido. E todas têm de o destruir. Agora pergunto a mim própria em que terei sido mais sincera, se nestas páginas ou nas acções que pratiquei.
“O Caderno Proibido”, escrito em 1952 pela italo-cubana Alba de Céspedes, é um pedaço de literatura introspectiva e muito realista, fruto do seu tempo, que poderá agradar a muitos leitores, mas pressinto que ecoará de uma forma mais retumbante em mulheres com uma idade e uma vida semelhantes a esta protagonista, divididas entre o emprego, a organização da casa, o marido, os filhos e a sua própria individualidade.
Alba de Céspedes foi uma escritora arrojada que, em 1939, se estreou com um livro que causou escândalo e não escapou à comissão de censura, que lhe retirou o prémio que ganhara com “Ninguém Volta Atrás”, a história de oito raparigas cuja autodeterminação não se coadunava com o retrato da boa dona de casa do fascismo. Dezassete vezes haveria de ser chamada à dita comissão, a quem respondeu sempre um lacónico “não” quando lhe perguntavam se não se envergonhava do que escrevia.
“Caderno Proibido” não tem nada de vergonhoso nem de escandaloso pelos padrões actuais, mas ganha desde logo essa carga negativa, primeiro, porque foi comprado impensadamente num quiosque ao domingo, quando estava vedada a venda de artigos de papelaria e, depois, em chegando a casa, Valeria, uma mãe de família de 43 anos, sente a pressão de o esconder...
Afinal não tinha, em toda a casa, uma gaveta, um cantinho que fosse meu.
...porque, neste seu primeiro lampejo woolfiano, não tem como justificar a necessidade de deitar para o papel os seus pensamentos e os acontecimentos do dia e, ainda para mais, mantê-los privados.
Mas tenho 43 anos e parece-me vergonhoso recorrer a pueris subterfúgios para escrever num caderno. Assim, é absolutamente necessário que confesse a Michele e aos pequenos a existência deste diário e afirme o meu direito de me fechar num quarto a escrever sempre que me apeteça.
Há, desde logo, a culpa incutida às mulheres de que, quando estão a fazer algo por si mesmas, estão a ser egoístas, a roubar tempo à família e aos seus deveres domésticos...
Há uma coisa que me impede de confessar que escrevo: é o remorso de perder tanto tempo a escrever. Muitas vezes lamento-me de ter muito que fazer, de ser escrava da família e da casa, de nunca ter a possibilidade de ler um livro, por exemplo. Tudo isto é verdade, mas em certo sentido esta escravidão tornou-se também a minha força, a auréola do meu martírio.
...e isso martiriza muito a protagonista, uma mulher educada à antiga, proveniente de uma família aristocrática caída em decadência, para quem trabalhar fora de casa ainda é uma indignidade. Valeria, que já se sente velha mas tem uma enorme ânsia de provar que ainda é uma mulher desejável e vibrante, vive entalada entre uma geração retrógrada do pré-guerra e outra que procura um corte a nível social e moral.
Ainda me lembro do dia em que anunciei a minha mãe que ia começar a trabalhar. Fitou-me demoradamente, em silêncio, antes de baixar os olhos; só por causa daquele olhar senti sempre o meu trabalho pesar sobre mim como uma culpa. Bem sei que Mirella não aprova o meu sentimento: decerto até o despreza e pretende fazer uma revolução contra mim, com a sua maneira de ser. Não compreende que fui exactamente eu que a tornei livre, eu com a minha vida dividida entre velhas tradições tranquilizadoras e o imperativo de exigências novas. Sou a ponte de que se aproveitou, como os jovens se aproveitam de tudo: cruelmente, sem sequer se darem conta do que estão a receber.
Embora abarque um período de apenas seis meses, de Novembro de 1950 a Maio de 1951, este diário é, mais do que um desabafo, um percurso de autodescoberta e também uma reflexão sobre o casamento...
Agora começo a perguntar o que significa para mim a palavra “amor” referida a Michele e a que sentimentos pretendo aludir ao dizer “Amo o meu marido.” Sinto-me angustiada. Era melhor deixar de escrever porque receio que o cansaço me impeça de ser objectiva. Às vezes imagino que há já muitos anos que não amo Michele e que continuo a repetir esta frase por hábito.
...em que nem sempre se simpatiza com Valeria, que amiúde parece mesquinha, invejosa, preconceituosa e injusta com os filhos, protegendo Riccardo e condenando Mirella.
Nunca compreendi Mirella embora compreenda sempre Ricardo. Às vezes penso que, se não fosse minha filha, me seria difícil gostar dela. (...) Eu nunca pensaria em ser advogada: estudava Literatura, Música, História da Arte. Só me ensinavam o que era belo e doce na vida. Mirella estuda Medicina Legal. Sabe tudo. Os livros foram para mim uma fraqueza que tive de vencer pouco a pouco, com os anos: a ela, pelo contrário, dão-lhe aquela impiedosa força que nos separa.
O Caderno Proibido, de Alba de Céspedes, Alfaguara, Maio de 2024, tradução de Ana Cláudia Santos
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