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Raízes - Lídia Jorge


Estuário, excerto

2018-07-04 10:37:24

Edmundo Galeano escrevia sobre um papel vulgar, mas quem não soubesse que havia perdido parte da mão direita, julgaria que estava a servir-se de um bico-de-pena para desenhar miniaturas sobre uma folha de seda. A mão, reduzida a indicador, polegar e parte do metacarpo, avançava
vagarosamente, distribuindo as palavras na superfície branca com simetria invulgar, e as letras juvenis, que antes eram agudas e irregulares, tinham passado a ser moduladas como se a aplicação do autor fosse a de um escriba. E isso era bom. Edmundo era filho do armador Manuel Galeano e já várias vezes havia dito ao pai que a mortalidade o visitara nos campos de Dadaab na medida certa. Levara-lhe o suficiente para se saber perecível, e não lhe roubara tanto que não fosse recuperável.
Ao pai ele havia mencionado recuperável, mas deveria ter dito substituível. Pois ao longo dos doze meses em que havia treinado a mão parcialmente decepada, operara-se uma espécie de compensação que o próprio ia registando com surpresa. À medida que reaprendia a manejar a esferográfica como se fosse uma criança a desenhar letras pela primeira vez, o ritmo lento ia-se-lhe impregnando por todo o corpo, levando -o a dar passadas extraordinariamente largas, enquanto o campo do olhar ia aumentando. Agora o que via não era só o que antes via, era também o que estava escondido por opacidade, e o que ainda não existia mas desejava ver. Como se a partir da fractura que havia ocorrido na sua mão, se tivesse estabelecido um comércio de ajuste entre o corpo e a psique, uma transferência entre o orgânico e a alma, e ele mesmo fosse o sujeito do processo de recuperação e o seu vigilante. E isso também não era mau.
A perda de três dedos, e um troço da palma da mão direita, colocara-o no centro de um universo até então desconhecido.
Valeria a pena a troca? Ninguém além dele mesmo tinha acesso ao dilema, mas o próprio por vezes, possuindo agora o que antes não tinha, achava que sim, que valia.
Valia a pena.
Pensando nessa transformação, naquela manhã de Junho, Edmundo Galeano já havia dado incontáveis passadas à beira do rio, passadas lentas, ritmadas, andando de cá para lá, entre o asfalto e a babugem, como se o mecanismo de um antigo relógio holandês tivesse passado a regular-lhe a circulação do sangue, e ele mesmo estivesse transformado num eloquente mostrador, que em vez de números cardinais contivesse palavras. As palavras eram os números e as agulhas do seu maquinismo. O pé direito avançava e o seu mostrador, involuntariamente, marcava as horas – Sozinho, no cais deserto. O pé esquerdo avançava e o mostrador dizia alto – a esta manhã de Verão. Adiantava-se de novo o pé direito, e com ele todo o corpo de Edmundo Galeano declamava como se ao mesmo tempo fosse proclamador e palco – Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido. Caminhava com um pouco mais de velocidade e a marcha transformava-se no eco de outras palavras – Olho e contenta-me ver, Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. E assim havia percorrido várias vezes, com passadas largas, a mochila ao ombro e o capuz na cabeça, o mesmo troço de cais, ora no sentido da foz, ora na direcção inversa, regressando ao mesmo lugar, depois de ter passado duas horas a copiar palavras, umas atrás das outras, sobre as folhas de um caderno vulgar, com a delicadeza de quem inscreve uma mensagem para a eternidade sobre um fragilíssimo papel de seda.
A ferida da mão direita, ainda mal cicatrizada, tal como a tinha trazido dos campos de Dadaab, deslizava sobre o papel.
Eram onze horas da manhã do dia vinte de Junho. Edmundo voltou a sentar-se na esplanada da Praça do Mar, um tabuado inscrito na berma, uma espécie de passadiço de cais, frívolo e turístico, modernaço, concebido para que os ociosos contemplassem a acção dos outros, e desfrutassem do efeito como seu, pensou ao sentar-se.

Comentários


A mostrar os últimos 20 comentários:

joaquim silva, 2018-08-10 16:44:27

Abriu-me o ''apetite''. Será o próximo a adquirir.

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